05/03/2011

Transformação Alcoólica





Durante o regime comunista do Leste europeu, o asqueroso Mestre-cervejeiro (Margarida Leoni Peixoto) deseja obter segredos do seu funcionário (Marcelo Adams) abusando de todo o alcance de sua autoridade. Seja à força ou através da sugestão, em Goela Abaixo ou Por Que Tu Não Bebes? O caminho da cerveja está garantido.



Não somos amigos?
Sim, sim.
Então beba!




Um dos mais significativos diferenciais dessa montagem de muito bom gosto é o que vem junto da entrega do ingresso: uma cerveja! É claro que a plateia não fica embriagada como as personagens, não se trata disso, o genial está na sugestão que o ato de beber promove, uma vez que o Mestre Cervejeiro não fala mais que 30 palavras sem oferecer cerveja ao empregado. A sensação é de aconchego, de atmosfera claramente envolvente, firme, por isso não há como distanciar-se das convincentes personagens russas cobertas por grossos casacos para enfrentar o inverno europeu. E para que essa linguagem saísse vitoriosa, me pergunto: há lugar mais adequado do que o Teatro de Arena? Olha, difícil. A plateia distribuída pelos três lados consegue enxergar aos outros e fica a poucos metros dos atores, portanto sendo convidada a relaxar e penetrar Goela Abaixo ou Por Que Tu Não Bebes?, cujo cenário é magnífico: sujo, simples e bem utilizado. Em frente a uma bandeira do socialismo, há uma pilha de garrafas cintilantes formando uma figura geométrica; uma escrivaninha tomada por papeis, uma família de baratas mortas e garrafas com cerveja até o gargalo; um balde velho e uma porção de luminárias no teto.






O regime comunista não foi explorado nem parcamente, assim como o potencial do roteiro, que se mostra maçante, banal e repetitivo. Cai diversas vezes no lugar comum, porém estou certo de que se trata de uma escolha proposital. Inegável dizer que isso acaba ofuscando todos os outros pontos positivos. Como teatro de ator, orgulha! Quem segura as pontas do roteiro é Margarida Leoni Peixoto, aqui muito diferente de como estava em Mães & Sogras. É uma atriz maravilhosa, podendo ser comparada à Arlete Cunha, que também demonstrou muito talento ao encarnar uma personagem masculina em Sonho de Uma Noite de Verão, montagem do clássico de William Shakespeare genuinamente executada pela Cia do Giro. Estas duas atrizes agarraram seus papéis e driblaram o obstáculo sexual com afinco e êxito. Margarida encontrou a voz ideal, o corpo ideal, as reações ideais e os tiques ideais (destaque para a língua maliciosa que saía da boca diversas vezes e as sobrancelhas inquietas). Marcelo Adams não chama tanto foco quanto ela, ele está afiado é na direção do espetáculo. Em tese, seu personagem nem deveria chamar atenção, pois é a figura oprimida do jogo de opressões que se instala no escritório encardido do Mestre Cervejeiro. O ator brilha principalmente quando é obrigado a aceitar os incontáveis copos cheios de cerveja e bebê-los com muita dificuldade, literalmente goela abaixo, ainda que seja diminuído quando sua companheira ergue a voz. Não somente porque ela é a figura dominante, mas porque a construção de sua personagem é muito mais crível e resistente, cativa o espectador. Bons exemplos são duas cenas que poderiam ser repetidas milhares de vezes conservando sua carga de comicidade: a cena em que o Mestre apalpa o sexo e corre em direção ao banheiro, congelando em frente à bandeira na posição de líder comunista, soltando uma risada grave e embriagada; e a cena em que ele resgata duas baratas do balde cinzento e continua seu discurso pessimista em relação à humanidade, gesticulando com as baratas no ar, em seus olhos e quase jogadas encima da plateia. A sensação é de que fazemos parte ativa do espetáculo, podendo inclusive ser atingido pelo cadáver de uma barata.




Mais perto do final, com ambos já tropicando e soluçando, podres de bêbados, surgem jogos de divertimento como acertar bolinhas de papel no balde ou confessar segredos debaixo da escrivaninha. Sob efeito do álcool, o empregado consegue finalmente rebater as palavras do Mestre Cervejeiro, demonstrando também possuir uma voz e a possibilidade de se impor. Mas em minutos, após essa demonstração de força, cai no choro. Lamenta sua posição, o trabalho que exerce, a vida que leva. Nesse momento as personagens trocam de chapéu e com este adereço do figurino vai junto todas as nuances da personagem, provavelmente para explicitar que um pode tomar o papel, e portanto as características do outro.


Ficha técnica
Texto: VACLAV HAVEL
Direção: MARCELO ADAMS
Elenco: MARCELO ADAMS e MARGARIDA LEONI PEIXOTO
Cenografia: MARCELO ADAMS
Figurinos: RÔ CORTINHAS
Iluminação: FERNANDO OCHÔA
Trilha sonora: MARCELO ADAMS e RAFAEL FERRARI
Fotografia: JÚLIO APPEL
Produção: RODRIGO RUIZ e CIA. DE TEATRO AO QUADRADO
Realização: CIA. DE TEATRO AO QUADRADO
www.marceloadams.blogspot.com
Duração: 80 minutos
Faixa etária mínima: 12 anos


01/03/2011

Chama Acesa




O Pigmalião de Leandro Ribeiro é longo, simples, audacioso, fílmico, e cansativo. Passei inquietas duas horas dentro da Sala Álvaro Moreyra, esperando uma reviravolta, uma lufada revigorante de energia que dissipasse o tédio causado por grande parte das cenas, ainda que o figurino e o cenário sejam prova de heróica resistência à falta de incentivo e dinheiro. O texto dramático de George Bernard Shaw, a partir do qual a montagem traçou sua linguagem cênica, não foi decisivo para consolidar o quadro decepcionante que Pigmalião acabou se revelando, e sim os que respiraram o ar das personagens de Shaw: o elenco. Talvez a aparição do potencial dramático de um ator seja contestável em apenas uma encenação, assim como ela não define se um ator é bom ou ruim. Ou melhor, se está bem ou mal, porque tudo pode ser trabalhado para futuras conquistas. Agora, se eu, na posição de quem analisa o objeto artístico com imparcialidade e concentração dissesse que o elenco da peça desempenhou interpretações verdadeiras ou mesmo admiráveis, não estaria fazendo jus à minha posição, estaria enganando o leitor, e o que é ainda pior, passando a mão aprobativa na cabeça dos atores e atrizes. Esta não é, de forma nenhuma, minha função. Meu dever é configurar-me com um apurado olhar externo, que expressa suas percepções a respeito do que vê, relaciona com outras linguagens, pesa argumentos, filtra considerações e procura manifestar-se com distância, livre de contaminações.



Grosso modo, o elenco de Pigmalião deixa perceber sua aspiração às artes cênicas, entretanto, erra a fala, esculpe a caricatura, fica de costas para a plateia, fala para dentro, força determinada forma de caminhar, dá o texto lido e encosta no amadorismo. Tudo isso seria compreensível se a peça fosse resultado de um curso de iniciação ou mesmo formação teatral, no qual a carga horária pode ser pequena e a exigência ínfima. Entretanto, a peça em questão é resultado universitário, mais especificamente da UFRGS. E aqui a tenra idade ou a inexperiência não cabem como justificativa para modelos de interpretações tão fracos. A cena inicial adianta o relacionamento conflituoso entre Freddy (Rodrigo Santana) e sua mãe (Ketti Cardoso), porém demora a alçar vôo e não diz muito, podendo ser perfeitamente cortada, como é o caso de outras cenas que poderiam ter sido enxugadas para que a essência tivesse atenção e cuidado especial. Ketti Cardoso mal aparece como madame, mas em cena, não poderia ter sido mais artificial. Melhora ao interpretar a governanta de Higgins, ainda que peque ao apresentar sempre o mesmo tom de voz e andar de forma rígida.




Ao sermos transportados para uma praça, os protagonistas são apresentados: a vulgar florista (Fernanda Majorczyk) de contagiante energia, Eliza Garapa; o arrogante professor de fonética, porém excelente profissional Henry Higgins (Douglas Carvalho) e seu estimado amigo, o delicado Coronel Pickering, interpretado por Paulo Roberto Farias corretamente, porém sem ousadia. Ao perceberem a personalidade vívida e origem humilde de Eliza, os amigos fazem uma aposta: Higgins terá o prazo de seis meses para fazer com que a florista passe despercebida em um baile de gala, tendo aulas de língua e de boas maneiras. Higgins e Eliza estabelecem a clássica relação de opressor e oprimido, travando uma explosiva batalha entre a autoridade de um e a cultura da outra. Ao saber da novidade, Alfredo Garapa (Patrick Peres), o pai de Eliza, corre até a casa do profissional da fala para uma íntima conversa, e acaba saindo com os bolsos cheios. Para fechar o quadro, foi colocado no testamento de um homem rico, prestes a morrer, que termina por condená-lo a viver para os outros, satisfazendo favores, empréstimos e amizades instantâneas, todos na tentativa de sugar seu dinheiro. O enriquecimento de Alfredo é contado por ele de forma confusa e repentina, não convencendo. E é por isto que, por mais que Cícero tenha se esforçado em seu papel - criando uma forma de falar idêntica a de um caipira, uma postura informal e abusada -, suas falas anestesiam o interesse pela narrativa de Pigmalião, principalmente por não acrescentarem ao conflito central, estando desconectadas.








O diretor escolheu o caminho da regionalização, referindo-se à Ilha das Flores e Usina do Gasômetro, o que funciona como gostoso artifício humorístico, entretanto cai por terra ao sair da boca de figuras absolutamente estrangeiras. No caso, ingleses do início do século 20. Henry Higgins, o personagem de Douglas Carvalho, é o que podemos chamar de burguês seguro de si. Ele atinge o auge da segurança pessoal devido aos longos argumentos e as mil cartas na manga, sempre obtendo a palavra final e exibindo seu conhecimento, principalmente linguístico e geográfico-cultural. Verdade seja dita: Higgins, de acordo com Pigmalião, não passa de um professor de fonética soberbo, pedante, mimado e terrivelmente temperamental. Impossibilitando a plateia de nutrir simpatia pela figura extremamente afetada e caricata construída por Douglas. E o pior, o ator tropeça no texto (naturalmente possui o mais longo) ao falar descontrolado, sem articular. Diferente de Lorde Henry, personagem de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que possui várias das características de Higgins, porém consegue emanar simpatia e admiração.




Na Grécia antiga, Pigmalião esculpiu uma linda mulher que batizou como Galatea, que mais tarde ganhou vida pelas mãos da deusa Afrodite. A transformação de Eliza em uma mulher da alta sociedade acontece aos trancos e barrancos, pois a garota não tem instrução e recebe as ordens de Higgins como uma criança as receberia. A sequencia que mostra as lições de Eliza é bárbara, Fernanda Majorczyk encarna o espírito do palhaço irreverente, atrapalhado e absolutamente ingênuo. Lembra Chaplin, lembra Chaves. Conquista a plateia através da figura cômica que contrapõe e questiona as regras da supremacia desenfreada de Higgins. Fernanda apresenta – e tem – o corpo excelente para a personagem, caminha com as pernas exageradamente abertas e com os braços esticados envolvendo o balde de flores. Sua voz não fica atrás, sem nunca tropeçar na forma errada e hilária de falar por ela construída. Destaque especial para a cena em que o professor a entope de algodões e pede para que repita um trava língua, o resultado é desastroso, mas a cena esplêndida. Eliza aprende a falar corretamente e a portar-se de forma elegante, anda com leveza e veste-se como princesa, é como se Fernanda tivesse mudado de papel, dada a eficácia da transformação no roteiro e no trabalho da atriz. Quanto à cena do baile, acredito que foi perdida, pois em nenhum momento senti que as figuras em roupa de gala estivessem realmente dentro de um grande salão, entre danças, risos e burburinho. O elemento mais agravante foi a atuação de Nani Goulart como a embaixatriz sueca, que abusou do estereótipo ao forçar o sotaque e levantar o nariz como símbolo de vaidade, dando contornos medíocres para sua personagem.




Eliza engana o baile inteiro, ganhando a aposta. Entretanto, escuta as vanglórias de Higgins com a cara fechada, até que resolve expressar o que sentia. Não compreende o motivo de ter sido obrigada a passar por toda essa transformação, está indignada por ter feito parte de um experimento caprichoso. Naturalmente o homem surta, reunindo toda a força de sua voz para retrucar. O mais estranho desta cena é que a própria Eliza Garapa (no início) foi deliberadamente até a casa do professor (com dinheiro) no ensejo de aprender liNções, como ela dizia. Novamente, temos a crença testada devido à problemas da narrativa. Cansada da situação, a dama encontra abrigo na casa da Sra. Higgins (Michele Csordas), que a ensina a pintar magicamente de um dia para o outro. Michele foi a escolha perfeita para o papel de mãe do protagonista, com a única ressalva de que poderia diminuir suas feições por vezes exaltadas e acentuar sua autoridade ao gritar para o filho “comportamento, Henry!”. Higgins, ao acordar, fica desesperado, admite ter caído em paixão por Eliza e inclusive depender de seus encantos, mas agora é tarde demais. Neste último ato os atores – supostamente aquecidos e com as personagens à flor da pele – entregam um físico cansado com o personagem praticamente apagado, tal chama resistindo ao vendaval impiedoso.






Ficha Técnica

Texto: Bernard Shaw
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco:
Fernanda Majorczyk - Eliza Garapa
Douglas Carvalho - Henrique Higgins
Paulo Roberto Farias - Coronel Pickering
Patrick Peres - Alfredo Garapa
Michele Csordas - Senhora Higgins
Ketti Cardozo - Dona Cândida/Senhora Eynsford-Hill
Taylor Mendonça - Engraxate/Padre Avelino/Nepomuck
Nani Goulart - Embaixatriz Sueca
Rodrigo Santanna - Fred Eynsford-Hill
Trilha Sonora Original: Julian Eilert e Caoan Goulart
Orientação: Lígia Motta
Realização: Cia. de Teatro Gato&Sapato

25/02/2011

Como Diria...





Num primeiro relance, lia-se O Bordel das Irmãs Metralha em negrito, cravado na placa circular com as letras rodeadas por lâmpadas incandescentes, lembrando os antigos camarins de estrelas. Todavia, as lâmpadas estavam apagadas, e não por acaso, pois uma figura cintilante e over – vestida com um roupão de onça pintada e o pescoço coberto por penugens laranjas - cruzava o palco remoendo suas mágoas: informava ao público que o bordel estava falido, ninguém mais o frequentava.



Mamãezinha Querida (João Carlos Castanha) é a soberba proprietária transexual do estabelecimento, cujos móveis ainda guardavam o glamour dos anos dourados. Inclusive, o cenário é reflexo das personalidades escancaradas que pisam o palco do Teatro Renascença, revelando um abuso de cores e objetos luxuosos muito bem-vindos da cenografia e da direção. Castanha leva apenas pouco mais de alguns minutos para conquistar boa parte da plateia com sua interpretação extremamente carismática. A tarefa que julgo ser a mais difícil é alcançar a construção de uma personagem crível, dado seu temperamento singular: arrogante e opressora até o último fio de cabelo tingido, do brilho labial ou da jóia espalhafatosa. Seja como for, Castanha consegue! Desvia sua personagem da tendência mais comum: tornar-se uma drag queen antipática. E o que me dá a certeza de que Mamãezinha pescou boa parte da plateia foram as fortes gargalhadas provocadas pela enxurrada de piadas e referências populares cômicas; todas seguidas pelo implacável bordão: "Como diria..."








Após alguns trovões avisarem que o tempo estava violento lá fora, irrompe o som de um trovão mais forte, interrompendo a tentativa de suicídio da dona do bordel e promovendo a deixa necessária para que a primeira futura irmã metralha fosse conhecida: Carmen, a bailarina! Com o pouco tempo que tem antes do próximo trovão, Mamãezinha é habilíssima em ofender Carmen, caçoando de suas bochechas salientes. Só não continua seu discurso opressor por causa da segunda aparição: Beatriz, a atriz! Enquanto a elegante, alta e magra recém-chegada de sobretudo cinza (no melhor estilo Casablanca) conversa com Mamãezinha, surge uma terceira figura: Ingride, a turista! De mapa nas mãos e envolta por uma capa de chuva amarela, a obesa pergunta: Is this Mexico? Para completar o quadro de espanto chega a quarta e última futura irmã metralha: Selma, a caipira! Mulher feia com os traços cansados, os dentes podres e a roupa rasgada. Antes que a velha proprietária fizesse alguma coisa a respeito, as meninas já estavam instaladas e prontas para arrasar.




Cada uma tem sua vez, seu momento de estrela debaixo do holofote. E o mais ridículo – que muito vem a somar pontos positivos – é o fato de elas serem retratadas sem idealizações. São destrambelhadas, erram a coreografia, a letra da música, desafinam e terminam esbaforidas; entretanto, nunca perdem a pose. Esta deve estar sempre intacta, deve ser uma fortaleza resistente à luxúria das emoções. A bailarina de roupas flexíveis que dança e canta ao som da muito adequada Let Me Dance For You é interpretada por Glória Crystal, cujo desempenho causa euforia na plateia, principalmente quando revela (em voz metálica) ser metade mulher, metade máquina. Toda essa energia manifestada pelos expectadores é canalizada internamente ao ouvirmos a emocionante canção de Beatriz, que ao tirar o sobretudo dos anos ’40 revela suas curvas através do vestido negro cheio de brilhantes. Aqui a dublagem funciona perfeitamente, ninguém diz que o ator Everton Barreto está dublando. A prova máxima de seu talento se dá quando a personagem compartilha sua história no microfone: é uma atriz decadente que teve o bico do seio decepado por Mr. Knife, um atirador de facas. Mais tarde descobriremos que Carmen e Beatriz, em sua época de circo, foram apaixonadas pelo mesmo cafajeste, o atirador de facas. Esse detalhe serve apenas de mais um motivo para a acirrada disputa das irmãs metralha, sempre querendo passar uma por cima da outra.








Chega então a vez de Ingride, que chacoalha a energia do público compenetrado. Dona de forte sotaque, a transexual de pele negra afirma ser alemã. É difícil contrariar o baixo alcance da voz de Dandara Rangel, porém sua interpretação é espetacular, brilhando mais que o próprio figurino! Ao ser insultada de litrão de Frukito, obviamente por Mamãezinha, Ingride resolve despir sua capa de chuva ao som de New York, New York: usa um vestido apertado com as cores da bandeira dos Estados Unidos e uma porção de acessórios com a mesma temática nacionalista. A norte-americana é infalível ao interagir com o público, que não consegue ficar sério diante de uma figura daquele tamanho cantando hilariamente com a língua trepidante e pulando tal qual uma baleia.




Na hora de Selma, ela está acanhada, mas não perde a vez de soltar a voz com honestidade e orgulho pelo seu povo nordestino. Ela é tachada de mulher do saco e partidária do MST, porém acaba dando inesperada prova do seu potencial ao cantar fervorosamente em defesa da separação do Nordeste autossuficiente de um Brasil explorador em Nordeste Independente, com a voz de Elba Ramalho, que se mostrou perfeita para a personagem Selma. Mamãezinha Querida começa a respeitá-la somente quando a jogam dentro de um vestido armado, pintam exageradamente seu rosto e alisam seu cabelo, agora ruivo; ela passa por uma transformação radical. Lauro Ramalho constrói uma personagem persuasiva em sua ingenuidade, sendo ironicamente a única nascida mulher. O grande feito do roteiro sagaz de João Carlos Castanha e Zé Adão Barbosa, que indubitavelmente ganhou carga inspirativa em Pedro Almodóvar, é a chance de mergulhamos nestas histórias absurdas e extremamente criativas que nos tocam, fazem rir, pensar e enternecem. Isso, devido ao caráter humano das personagens, que ultrapassa as diferenças culturais, sociais e inclusive pessoais. Quanto à direção de Zé Adão, não visualizei nenhum ponto negativo, nada que pudesse alertar. A montagem possui ritmo, o palco está equilibrado e bem explorado.




Mamãezinha Querida revela mais uma vez não ter papas na língua ao chamar a atenção de Beatriz “Sem Bico Teta de Ovo Frito” para seu gogó e citar uma frase de Luchino Visconti: “- Uma águia voa sozinha, os urubus voam em bando”. Ao que elas respondem: “- Se queres ser uma águia, não ande entre as galinhas!” No último ato, uma vez que as meninas foram aceitas para trabalhar no bordel, Mamãezinha aparece com uma roupa dourada pomposa e o cabelo da presidenta Dilma; fica ótima na posição de Monsieur Loyal, o dono do circo. Canta Viver do Amor em uma cena engraçadíssima, na qual o microfone oscila pra cima e pra baixo e ela repete! As irmãs metralha invadem a plateia, decididas a reabrir as portas do decadente bordel com muito brilho, rímel e classe!





Ficha Técnica

Roteiro - João Carlos castanha e Zé Adão Barbosa
Elenco - Dandara Rangel, Everton Barreto, Glória Crystal, João Carlos Castanha e Lauro Ramalho
Cenografia - Luiz Sentinger
Figurinos - Naray Pereira
Iluminação - Carlos Azevedo
Direção - Zé Adão Barbosa
Realização - CIA. RIDÍCULO DE TEATRO
Duração: 1h10min

16/02/2011

Estourando Balões Amarelos com a Brasa do Cigarro




A cenografia de Desvario chegou a meus olhos no formato de uma explosão estrelar azul. A atmosfera frígida-metálica da iluminação e dos figurinos lembra a rigidez estética de Quartett, sofisticado espetáculo de Bob Wilson. Mas, calma, essa é apenas a casca da montagem teatral da excelente diretora Tainah Dadda. Se a estética pode ser comparada a uma obra um tanto quanto fria, densa, moderna; o texto dramático está muito mais para o inverso, para a empolgante valsa de Johan Strauss Danúbio Azul. A comédia anti-”para toda a família” de Tainah é calorosa, tendo explícita inspiração do cineasta Woody Allen, com suas críticas muito pertinentes, ainda que em formato sutil.


Um homem de camiseta e paletó (Leandro Lefa), atormentado por não saber ao certo se está de chegada ou de partida, carrega uma mala vermelha pelo palco. Sua esposa (Patrícia Soso) não é quem vai dar respostas certeiras ou mesmo satisfatórias, aliás, Desvario responde pouca coisa, é muito mais ágil em estimular a pergunta. Já a resposta, esta, fica com o espect-ator. A mulher comprova estar no mesmo estado de incerteza e insegurança que o marido ao não reconhecer o próprio - suposto - amante (Lucas Sampaio), que vem retomar seu lugar como chefe da casa aos berros, chamando a mulher de gatinha. E ela, ainda que estranhando a situação em que está metida, mia como um felino em resposta. Os conflitos são então convidados a entrar e tomar conta de nossas personagens, que arregalam os olhos do público ao duvidarem da própria existência, dando margem à ideia de que são efetivamente personagens manipulados por um roteiro terminado, redondinho.


As discussões verbais entre os três – quem me dera poder dizer triângulo amoroso – são ácidas, implacáveis, homéricas; remetendo a casais tempestuosos como George e Martha na maravilhosa peça de Edward Albee Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? ou à Bill Harford e Alice em De Olhos Bem Fechados ou ainda à Frank e April em Foi Apenas Um Sonho. Mas, de novo, o casal inclina-se muito mais para a comédia, como Annie Hall e Alvy Singer em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen. Desvario é digno de aplauso e reconhecimento ao buscar inspiração no texto do dramaturgo chileno Jorge Díaz, recheado de falas histéricas e irrefreáveis, sendo que a peça nunca deixa de lado a veia artística, a originalidade e o conteúdo. Fiquei muito satisfeito ao ver a escolha inovadora da diretora ao dirigir uma cena de briga entre o casal, separando os atores em dois planos distintos, ficando a mulher em primeiro plano: todos os argumentos enfurecidos seguem beliscões, puxadas de cabelo, estrangulamentos, bofetadas e outros; o detalhe é que nem Patrícia nem Leandro chegam a se encostar um dedo, porém as agressões são muito visíveis e hilárias. Vislumbrei a união da técnica com a emoção, da concentração com a descontração, ou se preferirem, do cisne branco com o cisne negro.







Desvario já começou eletrocutando-me. Entrei no teatro refrigerado com a camiseta tomada por pingos de suor, me senti um ator com vasta movimentação num dia quente, passados 60 minutos de encenação. Porém, claro, sem todo o cansaço e a liberação de energia – e quem sabe endorfina. É justamente essa a sensação que Tainah Dadda causa: choque. Choque térmico, emocional, mental. O enredo não é difícil ou emaranhado, não precisa ser, é justamente o contrário de uma trama noir, repleta de intrigas. É simples, inteligível, cotidiano. E, paradoxalmente, complexo, profundo, hermético. De outra forma, saberíamos exatamente o que a autora queria dizer com seus patinhos de borracha amarelos! Sim, porque eles apareciam a todo o momento, participando até mesmo da foto de encerramento à lá bonecas russas.


A peça blefa com a platéia, brinca de gato e rato, mostra uma pedra chamando de algodão, e a gente acredita! Aí que está o encanto: na ausência de certezas. Ninguém sabe quem é, da onde veio e para onde vai. Ainda se a frustração acabasse aí, porém é só o começo. A crista da onda repousa no fato de o dia ter começado da maneira mais trivial possível, com pouquíssimas perguntas e um banquete morto de respostas: ir ao banco, lavar o cesto de roupas sujas, fazer as compras.


O cenário do espetáculo é carregado de simbologia: um aeroporto apinhado que, quando analisado, é também o recinto comprido e apertado de um avião. Ou mesmo um apartamento, porque o elenco se mostra aconchegado; entretanto basta o termômetro emocional subir, que em seguida caem do teto sacos de ar salva vida, o que imediatamente nos transporta à imagem do avião. Tudo isso vem muito bem a calhar se considerarmos a inspiração no texto de Jorge Díaz: versa sobre este sentimento de força imensurável, a solidão. O que nos dá a “certeza” deste cenário incomum é o familiar sinal de aviso que antecede uma voz feminina pausada e sempre em estado de graça, alertando atrasos e saídas de vôo. Não fosse pouco, uma aeromoça ruiva com gestos robóticos (Joana Vieira) serve de excelente contra-regra, interagindo com seus olhos esbugalhados. A atriz consolida seu talento ao fumar como uma diva, enquanto segura uma haste cheia de balões amarelos. Vai furando um por um a fim de sonorizar as discussões entre as personagens. Belíssima cena!





No último ato as personagens estão entrando em crise, é a ressaca de – subitamente - acordar sem a própria identidade. A suposta solução está na caixa vermelha aberta pela comissária de bordo: uma estranha figura feminina (Elisa Volpato) de vestimentas lustrosas, gargantilha vermelha e comportamento afetado. Cruza o palco com o microfone apertado nas mãos, dando show; diz ser uma cantora lírica (careca) que mais tarde revela-se transexual. E depois desmente. Se o triângulo teve a mais modesta das esperanças de enfim reconstruir suas identidades misteriosamente perdidas, enganaram-se. A cantora, ao invés de desamarrar os nós, aperta-os! Tendo isso em mente, a única liberação de tensão para o público é a gargalhada. E como ela aparece!






O elenco preparou atuações afiadas, convincentes, prontos para navalhar possíveis faltas de engajamento corporal e vocal. Leandro Lefa tem o físico e o rosto perfeitos para o papel de homem sensível e inteligente, recordando o ator Ethan Hawke em Antes do Pôr do Sol. Meu único conselho é trabalhar mais encima da voz, que às vezes fica baixa ou mesmo irritante. Não cheguei a assistir às temporadas em que Ursula Collischonn fazia o papel de Patrícia Soso, mas sou obrigado a elogiar a substituição, que se não tivesse tomado conhecimento, diria que não existiu, pois a atriz está exemplar dentro do vestido azul datado e ao mesmo tempo atemporal, fazendo contraste com o colar escarlate. Destaque para a cena em que ela erra propositalmente o texto, de forma absolutamente orgânica; Patrícia anda escolhendo bem as peças em que atua. Lucas Sampaio aparece fazendo apoios; usa uma camiseta apertada para ressaltar o físico, calças coladas e botinas. É o Johnny Bravo do Cartoon Network escrito, só falta o cabelo loiro e o topete. Mas isso é composição externa, o trabalho de ator de Lucas é extremamente bem feito, o peito inchado da personagem não lembra em nada um estereótipo, sendo inclusive aproveitado.


Não me restam dúvidas de que a montagem aqui analisada vem muitíssimo bem a calhar nestes tempos de frivolidade teatral.


Alienação, alucinação, delírio, demência, desatino, desvairo, insânia, loucura e tresvario.




Ficha Técnica
Elenco: Elisa Volpatto, Leandro Lefa, Lucas Sampaio, Patrícia Soso e Joana Vieira.
Preparação corporal: Moira Stein
Cenografia: Marcos Buffon
Iluminação: Nara Maia
Figurinos: Maiguida
Trilha Sonora: Arthur Barbosa
Programação visual: Ingo Wilges e Lucas Sampaio
Produção executiva: Lucas Sampaio e Luísa Barros
Direção de produção: Lucas Sampaio e Luísa Barros

06/02/2011

Água Bebida na Concha da Mão




Uma joaninha pousa, suavemente, na tela do monitor ainda em branco. Mas eu, esta tarde, ainda não escrevi nada.
Para quê? Se por ali já havia pousado o frêmito e o mistério da vida...



Minha intervenção na poesia de Mário Quintana é com o intuito de relatar exatamente o que aconteceu quando comecei a escrever estas percepções, ou melhor, quando comecei a pensar no que escrever. Avistei a joaninha e em seguida, num estalo, avistei a formiguinha do poema de Mário. Quer coisa mais linda do que uma ligação como essa? Sim, porque talvez o universo que conhecemos está em toda sua integridade e vastidão por debaixo dessa associação, está todo dentro da joaninha viva, da formiguinha apressada, das letras sábias. Esse exemplo de despretensão e simplicidade na escrita vale ouro. Acaba fazendo da arte literária uma arte atemporal, acessível, cativante e popular.




Pois acho que é mais ou menos isso que o poeta gaúcho – nascido em 30 de Julho de 1906, leonino – fazia e gostaria que seus leitores fizessem: boas associações direcionadas à felizes reflexões. Uma mulher – e outras mulheres e outros homens, uma equipe, uma família - eu tenho certeza que alcançou esse ideal: Deborah Finocchiaro, uma das atrizes mais corajosas que eu tive a honra de assistir e conhecer. Corajosa porque ela vai (e foi!) atrás dos seus sonhos, chamou o diretor Jessé Oliveira, a artista plástica Zoravia Bettiol, o compositor Chico Ferretti - e tantos outros - assim montando essa lufada de esperança na vida que é Sobre Anjos e Grilos. E por que razão a união de tantos artistas se a obra é de um único poeta? Simples: a obra de Mário Quintana aborda milhares de assuntos pertinentes em formatos deliciosamente impertinentes! Ele não escreve para a burguesia, elite ou favela. Escreve para a Maria de Todo o Dia, pro João Cara de Pão.

“ (...)
Para você, que está com esse jornal na mão...
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia
O resto não passa de crônica policial – social – política.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é critica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são cotidianas como o
[pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
[na concha da mão.”




Sou tomado por um tipo de “Efeito Mário Quintana” após ler seus versos. São imediatos, chegam aonde precisam chegar sem esforço aparente, arregalam nossos olhos, são ágeis e cativantes, podendo reverter um conceito cristalizado na mente em pouco tempo. Faz daqueles que repudiam poesia, leitores ativos.


Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...



Além de uma poética repleta de imagens escolhida para guiar esse trabalho, o espetáculo é certeiro ao apostar nas coloridas gravuras de Zoravia Bettiol -> http://www.zoraviabettiol.com.br/, as quais possuem um dos traços mais infantis que meus olhos já viram, o que é um presente, pois Zoravia tem a liberdade de uma criança. Pablo Picasso disse que passou a vida inteira para aprender a desenhar como uma criança, imagine?




E se alguém consegue conservar por toda a vida a criança que tem em si, esse alguém será realizado e nunca envelhecerá.


As gravuras inspiradas no universo do poeta são impecavelmente projetadas em uma tela transparente, são explosões de cores dando forma aos poemas, cenário mais do que adequado para um monólogo de teor celebrativo. A atriz transmite essa mensagem das mais escusas formas que possamos imaginar, expressando-se com cada partezinha do corpo, cada músculo, cada articulação. Em determinada cena, é possível enxergar a silhueta e o movimento da água nos dedos oscilantes de Deborah, que opta pelo engajamento e pela fluidez entre verbo e gesto. O Quintana-Menino é visualizado em praticamente todos os momentos de Sobre Anjos e Grilos, como se houvesse uma necessidade por parte do poeta (e da personagem que encarna seus versos) de retornar à forma pueril de pensar e reagir.






Quando a figura magra e cheia de vida de Finocchiaro aparece pela primeira vez, avistamos um vulto branco rodopiando o chão do palco nu. O traje é lindo, iluminado, solto e leve o suficiente para as constantes travessuras que deixam qualquer adulto de espírito velho enlouquecido. O que se ajusta como uma luva quando posto ao lado da encenação: Deborah fala, pula, canta, chuta e berra como uma legítima criança revelando os mistérios da vida e seus próprios mistérios na vida. Sentado no teatro, pensei: “E essa mesma mulher fez uma puta extraordinária na outra peça, Vozes Urbanas! -> http://percebeoteatro.blogspot.com/2010/12/anseio-dos-momentos-mais-saudosos.html” Tendo o espírito da criança, a personagem vai bater na mesma tecla do piano quantas vezes for necessário, e se a tecla quebrar, parte pra outra! Uma delas há de liberar faíscas de verdade através do som. E é nosso papel a combinação harmônica dos sons para então libertarmo-nos das garras pontiagudas desse meio que humilha, reprime, detona.


Dizem que o poeta é produto do meio. Bobagem!
O poeta é um produto contra o meio.



E se um balanço for utilizado como auxílio, perfeito! A sensação é de que a atriz vai ser abraçada pela plateia a qualquer momento, sem dúvida uma dos enquadramentos mais líricos. Com tanto para recitar, nossa estrela precisou do suporte de um microfone hilariamente instalado na sua testa! Essa escolha pode provocar rejeição inicial, mas já digo, é só inicial. Depois que nos acostumamos com a voz da atriz e suas variantes, pouco importa se existe ou não microfone. O que importa é a palavra dita pela boca-mente-corpo-coração.






O roteiro, descobri, partiu das entrevistas de Mário Quintana. Foi essa a fonte principal para que os cataventos começassem a girar. Como eu disse anteriormente, os temas abordados pela caneta de Mário são muitos, indo de religião ao consumismo. Sempre lembrando que não importa se acreditamos ou não em Deus, mas se Deus acredita na gente.


- Que fazia Deus antes da Criação?
- Dormia.
- E depois?
- Continuou a dormir.
- Mas Ele não tem de cuidar do mundo?
- Ele está é sonhando o mundo: está sonhando até nós dois aqui conversando...
- Cruzes! Cala-te!
- Fala mais baixo...


Se Eu Fosse Um Padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
(...)
Porque a poesia purifica a alma...
um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!


O Supremo Castigo

(...) De modo que, se esta civilização desaparecer e seus dispersos e bárbaros sobreviventes tiverem de recomeçar tudo desde o princípio, pensarão eles que Coca-Cola era o nome do nosso Deus!


Depois dessa frase, surge no telão um vulto negro com as curvas do refrigerante mais famoso do mundo e milhares de pessoas ajoelhadas, venerando. A peça leva a plateia à loucura, arrancando muitas gargalhadas.





Outro tema que muito me marcou foi o progresso desenfreado, causador da aceleração cotidiana. Cada passo dado na rua tem de equivaler à um clique virtual: iniciar, enviar, entrar, conectar, compartilhar, publicar, sair, remover, cancelar, OK. É um novo formato de vida que, ao invés de ajustar-se, suga e escraviza o que vê pela frente. Mas é claro, como toda a regra tem sua exceção, toda situação pode ser revertida. É aí que Sobre Anjos e Grilos entra com toda a robustez sensível que o teatro carrega. Vai lá, Mário:


Ah! Os Relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

(...)

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...


Preparem-se para uma ligação inusitada: Rubem Fonseca. Ora, e por que não? Já que versei a respeito do progresso descontrolado, deixo aqui um fragmento que resume algumas conseqüências, retirado do inacreditável e corrosivo conto Intestino Grosso: “Estamos matando todos os bichos, nem tatu agüenta, várias raças já foram extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos.”


Outro tema que ficou gravado na minha cabeça foi o da evolução humana, sendo genialmente subvertido: ao invés da evolução a partir do macaco, o inverso! A personagem termina corcunda e aos pulos, guinchando. Antes dessa cena, ela fala sobre os grã-finos, indo da criança ingênua para um mulherão de voz grave e ridiculamente sensual: “-Ai, os grã-finos são tão... Ai, tão... São tão... PRIMITIVOS!





Dos Rituais

No primeiro contato com os selvagens, que medo nos dá de infringir os rituais, de violar um tabu! É todo um meticuloso cerimonial, cuja infração eles não nos perdoam. Eu estava falando nos selvagens? Mas com os civilizados é o mesmo. Ou pior até. Quando você estiver metido entre grã-finos, é preciso ter muito, muito cuidado: eles são tão primitivos...





Na poesia de Quintana “as coisas voltam a nos interessar, como se voltássemos a ser o recém-nascido no mundo. E em verdade vos digo: nunca deixamos de o ser”; palavras de Luis Fagundes do Amaral. Aí me pergunto por que nossa sociedade precisa consumir entretenimentos tão bombásticos? Sim, porque se o filme não tiver explosões colossais, milhares de tiros, mocinhos e mocinhas sex simbol, vilões cafajestes e a última cena com um beijo heterossexual; não serve. Será que o motivo é a falta de intensidade na vida das pessoas? A falta de aventura, de amar os simples prazeres da vida? Que, não esquecendo, são simples porque assim os deixamos ser. Acredito que muito possa ser... Temperado com a morte! Como disse o poeta.


O título da peça remete às palavras de Érico Veríssimo e aos poetas mortos. Entretanto a idéia de Quintana como um anjo – ainda mais se católico – é estranha. O poeta era bêbado e sarcástico, praticamente toda sua obra é permeada pela mais fina ironia.


Tratando-se de um monólogo, toda a informação é concentrada em uma única pessoa, então, pro balão não estourar, imagino que seja necessária muita disciplina por detrás do encanto cênico. Claro que a direção não precisa dividir o enfoque, entretanto a ausência de colegas pode agir de forma inibidora ou o contrário, arrogante. O que mais me atrai em monólogos é a autonomia que eles são capazes de promover ao ator, a independência. Sobre Anjos e Grilos foi o espetáculo que batizou a Companhia de Solos & Bem Acompanhados, nascida em 1993. O nome é maravilhoso, porque realmente, tanto nesta peça quanto na excelente Poisé Vizinha -> http://percebeoteatro.blogspot.com/2010/01/oi-ana.html , a protagonista está e não está sozinha, já que invoca a companhia da poesia, da vizinha Ana, do João e da Maria, do jovem professor de inglês.





Ao sair embriagado de letras do Teatro de Câmara Túlio Piva deparei com um senhor na frente do bar Pinacoteca levantando despudoradamente a voz para uma mulher:

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!



A peça atingiu alguma parte do senhor e por ali depositou sua semente. Pois também fui semeado, falta agora desabrochar. Mas isso é comigo. E com vocês!

Simultaneidade

- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.






ficha técnica
textos e poemas - mario quintana
concepção, roteiro e atuação - deborah finocchiaro
direção - deborah Finocchiaro e jessé oliveira
imagens - zoravia bettiol
trilha sonora original - chico ferretti
iluminação - fabrício simões e jessé oliveira
produção - daniela lopes e deborah Finocchiaro
realização - companhia de solos & bem acompanhados

29/01/2011

Profundo Ou Pro Fundo?




Não há como dizer que O Urso se enquadra na categoria de uma hilariante crítica ao comportamento de homens e mulheres. Não existem surpresas na adaptação do enredo, que, inclusive, é previsível. O Urso de Deborah Finocchiaro inicia com uma imagem barroca: a atriz Elaine Regina está sozinha no palco, recostada no divã negro em pose sensual, toda envolta por um véu escuro e um vestido levemente armado, transparente a partir da metade das coxas. O que é, no mínimo, estranho. Desde quando uma viúva que faz voto de fidelidade eterna deixa as pernas de fora? É como se a direção almejasse adiantar alguma coisa para nós. Alguma escolha estética que nada tem de clássica. E o fez bem feito. A mulher em questão – alta, pescoço comprido e cabelo muito curto – é o eu/fragmento/lado exaltado de Popova. Sim, porque na adaptação da diretora a protagonista é vivida por nada mais nada menos do que três atrizes! E três atrizes de calibre, sem dúvida. Tal escolha resultou em uma personagem inevitavelmente rica em sua multiplicidade conflituosa, contradizendo-se a todo o momento, o que pode ser verificado em Regina com sua personalidade exaltada, que mais tarde entra em conflito com as atitudes reveladoras da forma masculina de pensar e reagir. Como quando desafia o Credor – homem vivido por Elison Couto, ganhador do Prêmio Açorianos de Melhor Ator, o qual vem reivindicar uma velha dívida (de aveia!) deixada pelo esposo de Popova – mandando-o embora de sua casa com bastante calma, explicando a situação. É só depois que vem a veemência, a irritação e o descontrole cobertos por energia feminina.






Após a morte do marido, Popova trancafiou-se em sua casa prometendo castidade até surgirem suas primeiras rugas e seu rosto murchar, como flor esquecida pela água da chuva. Quando a iluminação de Fabrício Simões desoculta a viúva, ela está atirada no divã em uma lânguida, sofrível lamentação pela morte do homem. Desliza pela sala de estar com a leveza de uma bailarina, agarra o retrato do esposo e põe-se a chorar, sendo categórica ao dirigir-se ao mordomo (Sandra Alencar): “-Não recebo mais visitas! Esqueceu?”. O mordomo Luká e a direção de Deborah são os elementos que fazem valer à pena O Urso. Sandra Alencar está deliciosamente irreconhecível embaixo da corcunda e da forte expressão facial do velho mordomo. Não é por acaso que ele rouba as melhores – dentre poucas – cenas engraçadas. Isso porque Sandra tomou para si a linguagem do palhaço augusto (ingênuo, figura oprimida) e do mímico com aptidão. Meus parabéns!







O caso é muito diferente quando analisadas as atuações de Elaine Regina e Simone Telechi – indicada ao Prêmio Açorianos de Melhor Atriz -, que são propositalmente afetadas. O que, de partida, cativa, faz rir. Lembra Almodóvar com seu Abraços Partidos. Mas depois... Essa escolha é sufocada. E assim também é o percurso do humor. Tratando-se de uma comédia, o humor é a principal coluna de sustentação, é a base, o âmago de toda a vitória. Por isso deve se renovar constantemente, manifestar-se com fluidez e na medida certa, assim podendo alcançar um nível de irreverência desejado por todo artista que se preze. A veia cômica de O Urso nasce promissora, entretanto desenvolve-se de forma paupérrima, resultando em um humor rasteiro e caricatural. São tantas piadas e referências repetidas que mesmo a casa estando cheia, acaba não rindo. No geral, o público demonstra ter gostado muito de tudo o que viu, mas os momentos apelativos não podem ser contrariados. Um bom exemplo são as insistentes piadas do Credor, envolvendo a ridicularização feminina e os estereótipos da guerra dos sexos. Sátiras não precisam ser rasas, pode-se satirizar com inteligência também.






É notável a ousadia em montar uma comédia de costumes clássica - do russo Anton Tchekhov – de forma não realista. Há diversos pontos altos, destacando aqueles em que a iluminação é densa e colorida, assim causando uma atmosfera ritualística cujo elenco demonstra sincronia perfeita ao concentrar suas emoções no movimento, ao permitir que o corpo descondicionado esteja livre para dizer o que bem entender. Com, obviamente, uma fina e invisível linha guiadora, tecida por Deborah ao dirigir impecavelmente essa peça, ganhadora do Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo em 2003, ano em que o Grupo dos Cinco surgiu. Estes pontos positivos, todavia, são ofuscados por uma avalanche (não em quantidade, mas em qualidade) de pontos baixos. O estereótipo da mulher-menina dissimulada, de voz agudíssima e trejeitos infantis é demasiado cansativo. Difícil não levar a sério, abstrair o temperamento afetado e ininterrupto das atrizes, encontrando o auge da afetação em Simone Telechi, a posição intermediária em Elaine Regina e a exceção em Sandra Alencar, que pouco aparece como Popova, sendo a mais sutil das três facetas, de estaura baixa, capelos compridos e ondulados. O corpo das atrizes encaixa-se como uma luva nos papéis/personas que desempenham!






No fim, Popova acaba se apaixonando pelo antes repugnante Credor, sendo comparado com a figura do urso: grande, forte, difícil de contrariar e resistente. Pouco antes da metade da peça ele já confessa seu sentimento de paixão para a plateia, e não é a primeira vez que se dirige a ela, são várias as perguntas e constatações direcionadas ao espectador. Mas antes da protagonista cair em seus braços, ela dá um show de meninice. Fazendo questão de duelar com o urso, apenas que... Bom, ela não sabe usar as armas, então será que ele poderá ensinar? Diz isso lançando um olhar de fêmea fatal irresistível para qualquer urso, até mesmo os mais dóceis. Popova mascara seus desejos, mas acaba se entregando. Diferente de mim, que não achei brecha para me entregar à peça. Com a exceção de alguns momentos.

Ficha Técnica

texto - anton tchekov
elenco - elaine regina, elison couto, sandra alencar e simone telecchi
direção - deborah finocchiaro
iluminação - fabrício simões
concepção e montagem de trilha sonora - edinho espíndola e marcelo figueiredo
produção e realização - patrícia soso e grupo dos cinco
assessoria de imprensa - sandra alencar

21/01/2011

Pseudo Impacto, Real Frustração



Se o hibridismo é uma violação das leis naturais, fica bem claro o porquê da peça em questão intitular-se “Hybris”. Porque viola os conceitos do teatro convencional. Oposiciona-se à tradição através da ousadia. Podendo ser esta criativa ou rasteira, construtiva ou destrutiva, original ou apelativa. Terminei de assistir “Hybris” agitado, não por empolgação, estava decepcionado. Minhas expectativas foram esmagadas e tive certeza de que a peça verte mais para o segundo caso de ousadia. O título também se refere – e talvez principalmente – ao conceito grego de desmedida, o personagem é tomado por um sentimento exacerbado. Um dos componentes da tragédia grega que revela provocação aos deuses e à ordem estabelecida. Também “pathos” – raiz de paixão e patologia – são as conseqüências terríveis do descomedimento humano.

O material de divulgação, o grupo envolvido, o tema, o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, a locação escolhida; tudo arremessava “Hybris” às alturas, lançando-se como um projeto promissor. E essa imagem foi sendo nutrida e ganhando força quando cheguei ao imenso Hipódromo Cristal, o qual ostentava vestígios de um glamour agora decadente: carpetes vermelhos, poeira, luminárias pomposas e paredes de vidro. Inaugurado em 1959, o prédio é considerado uma obra-prima da arquitetura brasileira e uruguaia. Os espectadores são guiados a um estreito túnel, onde há espaço para um de cada vez. Essa situação adianta a importância que o grupo deposita em sua plateia, elemento fundamental para suas constantes investidas – sim, porque aqui o termo “interações” me parece mentiroso. Adoro provocações de qualquer espécie, de outra forma não iria tão frequentemente ao teatro. Quem vai ao teatro aceita ser provocado, mas isso não significa que o ator tem a liberdade de fazer o que quiser com o espectador. Em “Hybris” somos abraçados, apalpados, esfregados, cutucados. E não pense que vá receber um olhar antes disso acontecer, uma bailarina nua correrá em sua direção esperando receptividade. O resultado? Tensão. E esta sufoca qualquer fagulha de reflexão ou plasticidade. O impacto visual existe, mas é um impacto morto, agressivo, banal. Tirar a roupa de um ator é fácil, o difícil é construir a intenção.

A cenografia é vislumbrante, são painéis escuros e claros que servem de paredes móveis guiadas pelas mãos dos atores. As instalações possuem um nível de abstração comparáveis às obras lúdicas da 7ª Bienal do MERCOSUL. “Ao propiciar o encontro entre o arcaico (personagens, enredo) e o contemporâneo (cenário, temática), o dramaturgo compõe uma unidade híbrida, na qual o teatro, a dança e as artes visuais dialogam com fluidez”. A trilha sonora é alta e sinistra, mesclando sons metálicos e gélidos. Todas as personagens surgem de modo inusitado: nascem através das frestas das paredes, atravessam cimento. As bailarinas diferenciam-se das personagens principais pelo figurino estilizado, um vestido cinza delineando perfeitamente as curvas do corpo, flexível e rutilante, escolha muito adequada. Estas figuras embaçadas permeiam o foco narrativo que se inicia com uma mãe de vestido vermelho resplandecente tentando pentear sua filha violentamente. Presenciamos então o estupro da menina pelo pai e mais tarde o desejo desta de ganhar uma prova de amor: um assassinato cometido pelas mãos de seu noivo. O restante do elenco representa o Calibã (único vestígio restante da idéia original de montar “A Tempestade”, de Shakespeare), o Crente e a Entidade, envolvendo-se em acirradas discussões – com teor cético – sobre uma sociedade que pôs em risco sua própria existência.

A derrocada de “Hybris” se dá logo nas primeiras falas. Não bastasse um texto com temáticas já muito revisitadas, o elenco não mostrou preparo cênico. É claro que eu não digo preparo físico, este foi muito bem explorado, principalmente pelo enfoque circense do grupo Falos & Stercus. Me refiro à preparação de ator, à organicidade, à presença cênica, à impostação de voz e, enfim, o texto dado com verdade, com o corpo e o coração, e não o texto lido. A partir do momento em que os atores e as atrizes abriram a boca, a atmosfera promissora em conjunto de todo o trabalho artesanalmente alcançado é engolido. E quando tenta voltar é sempre com a mesma fórmula equivocada: impactar. Posso muito bem considerar as palavras do diretor Marcelo Restori: - Estamos dizendo, no fundo, que qualquer discurso hoje é vazio se não vier impregnado de uma ação. Porque muito texto no teatro também é demagógico. Entretanto, o que temos aqui é um discurso dito de forma vazia.

Somos então conduzidos ao andar superior pela Dama das Paredes: é como se adentrássemos o habitat de uma enorme aranha mitológica responsável pelos elásticos negros que bloqueiam nosso caminho, similares a uma teia de aranha que cobre o andar inteiro. No final da cena, um susto: as atrizes somem pelo precipício. E o mais incrível é que elas não se jogam, flutuam. E o encanto não é perdido quando descobrimos que há chão firme, pois as bailarinas - e o Calibã - realmente flutuam ao exibir suas habilidades penduradas no teto em uma belíssima cena de rappel. Ao longe, Porto Alegre transformada em paisagem noturna, vastamente iluminada. Impossível esquecer o ator Federico Restori, que interpreta o Calibã-Menino em diversos flashbacks, devido ao seu excelente desempenho. O menino de doze anos dá um show de interpretação, cativando e persuadindo o público. Suas falas são bem articuladas, nenhum gesto parece artificial. O que ele passa é justamente naturalidade, inclusive quando dá o texto aos berros: - Os pais existem para proteger os filhos, e não serem responsáveis pelo sofrimento deles.

No fim, saí apressado do teatro. Talvez, porque até agora tinha assistido a bons exemplos de teatro contemporâneo ou talvez porque tinha meu corpo todo picado por mosquitos. Um pouco dos dois.

Ficha Técnica:

Direção e dramaturgia: Marcelo Restori
Elenco: Carla Cassapo, Fábio Cunha, Luciana Paz, Fábio Rangel, Alexandre Vargas e Jeremias Lopes, Bia Noy (atriz recém chegada de Paris, onde atuou por 5 anos), Fredericco Restori (ator mirim)
Bailarinas: Aline Karpinski (também coreógrafa), Iandra Cattani, Ju Rutkowski, Carol Dias e Fabi Martins
Coreografia: Aline Karpinski
Cenários e ambientações: Luiz Marasca.
Trilha especialmente composta: 4 Nazzo e Cláudio Bonder
Desenho de luz: Veridiana Matias
Elaboração de projeto: Alexandre Vargas
Ass. de produção; Elenice Zaltron
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Maquiagem: Juliane Senna
Resp. pela prep. de rappel: Fábio Cunha
Videos: Coletivo Incosciente (Frederico Ruas.e Zeca Brito)
Fotos e arte: Fernando Pires
Figurinos: Daniel Lion
Produção, divulgação e realização: Falos & Stercus