21/01/2011

Pseudo Impacto, Real Frustração



Se o hibridismo é uma violação das leis naturais, fica bem claro o porquê da peça em questão intitular-se “Hybris”. Porque viola os conceitos do teatro convencional. Oposiciona-se à tradição através da ousadia. Podendo ser esta criativa ou rasteira, construtiva ou destrutiva, original ou apelativa. Terminei de assistir “Hybris” agitado, não por empolgação, estava decepcionado. Minhas expectativas foram esmagadas e tive certeza de que a peça verte mais para o segundo caso de ousadia. O título também se refere – e talvez principalmente – ao conceito grego de desmedida, o personagem é tomado por um sentimento exacerbado. Um dos componentes da tragédia grega que revela provocação aos deuses e à ordem estabelecida. Também “pathos” – raiz de paixão e patologia – são as conseqüências terríveis do descomedimento humano.

O material de divulgação, o grupo envolvido, o tema, o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, a locação escolhida; tudo arremessava “Hybris” às alturas, lançando-se como um projeto promissor. E essa imagem foi sendo nutrida e ganhando força quando cheguei ao imenso Hipódromo Cristal, o qual ostentava vestígios de um glamour agora decadente: carpetes vermelhos, poeira, luminárias pomposas e paredes de vidro. Inaugurado em 1959, o prédio é considerado uma obra-prima da arquitetura brasileira e uruguaia. Os espectadores são guiados a um estreito túnel, onde há espaço para um de cada vez. Essa situação adianta a importância que o grupo deposita em sua plateia, elemento fundamental para suas constantes investidas – sim, porque aqui o termo “interações” me parece mentiroso. Adoro provocações de qualquer espécie, de outra forma não iria tão frequentemente ao teatro. Quem vai ao teatro aceita ser provocado, mas isso não significa que o ator tem a liberdade de fazer o que quiser com o espectador. Em “Hybris” somos abraçados, apalpados, esfregados, cutucados. E não pense que vá receber um olhar antes disso acontecer, uma bailarina nua correrá em sua direção esperando receptividade. O resultado? Tensão. E esta sufoca qualquer fagulha de reflexão ou plasticidade. O impacto visual existe, mas é um impacto morto, agressivo, banal. Tirar a roupa de um ator é fácil, o difícil é construir a intenção.

A cenografia é vislumbrante, são painéis escuros e claros que servem de paredes móveis guiadas pelas mãos dos atores. As instalações possuem um nível de abstração comparáveis às obras lúdicas da 7ª Bienal do MERCOSUL. “Ao propiciar o encontro entre o arcaico (personagens, enredo) e o contemporâneo (cenário, temática), o dramaturgo compõe uma unidade híbrida, na qual o teatro, a dança e as artes visuais dialogam com fluidez”. A trilha sonora é alta e sinistra, mesclando sons metálicos e gélidos. Todas as personagens surgem de modo inusitado: nascem através das frestas das paredes, atravessam cimento. As bailarinas diferenciam-se das personagens principais pelo figurino estilizado, um vestido cinza delineando perfeitamente as curvas do corpo, flexível e rutilante, escolha muito adequada. Estas figuras embaçadas permeiam o foco narrativo que se inicia com uma mãe de vestido vermelho resplandecente tentando pentear sua filha violentamente. Presenciamos então o estupro da menina pelo pai e mais tarde o desejo desta de ganhar uma prova de amor: um assassinato cometido pelas mãos de seu noivo. O restante do elenco representa o Calibã (único vestígio restante da idéia original de montar “A Tempestade”, de Shakespeare), o Crente e a Entidade, envolvendo-se em acirradas discussões – com teor cético – sobre uma sociedade que pôs em risco sua própria existência.

A derrocada de “Hybris” se dá logo nas primeiras falas. Não bastasse um texto com temáticas já muito revisitadas, o elenco não mostrou preparo cênico. É claro que eu não digo preparo físico, este foi muito bem explorado, principalmente pelo enfoque circense do grupo Falos & Stercus. Me refiro à preparação de ator, à organicidade, à presença cênica, à impostação de voz e, enfim, o texto dado com verdade, com o corpo e o coração, e não o texto lido. A partir do momento em que os atores e as atrizes abriram a boca, a atmosfera promissora em conjunto de todo o trabalho artesanalmente alcançado é engolido. E quando tenta voltar é sempre com a mesma fórmula equivocada: impactar. Posso muito bem considerar as palavras do diretor Marcelo Restori: - Estamos dizendo, no fundo, que qualquer discurso hoje é vazio se não vier impregnado de uma ação. Porque muito texto no teatro também é demagógico. Entretanto, o que temos aqui é um discurso dito de forma vazia.

Somos então conduzidos ao andar superior pela Dama das Paredes: é como se adentrássemos o habitat de uma enorme aranha mitológica responsável pelos elásticos negros que bloqueiam nosso caminho, similares a uma teia de aranha que cobre o andar inteiro. No final da cena, um susto: as atrizes somem pelo precipício. E o mais incrível é que elas não se jogam, flutuam. E o encanto não é perdido quando descobrimos que há chão firme, pois as bailarinas - e o Calibã - realmente flutuam ao exibir suas habilidades penduradas no teto em uma belíssima cena de rappel. Ao longe, Porto Alegre transformada em paisagem noturna, vastamente iluminada. Impossível esquecer o ator Federico Restori, que interpreta o Calibã-Menino em diversos flashbacks, devido ao seu excelente desempenho. O menino de doze anos dá um show de interpretação, cativando e persuadindo o público. Suas falas são bem articuladas, nenhum gesto parece artificial. O que ele passa é justamente naturalidade, inclusive quando dá o texto aos berros: - Os pais existem para proteger os filhos, e não serem responsáveis pelo sofrimento deles.

No fim, saí apressado do teatro. Talvez, porque até agora tinha assistido a bons exemplos de teatro contemporâneo ou talvez porque tinha meu corpo todo picado por mosquitos. Um pouco dos dois.

Ficha Técnica:

Direção e dramaturgia: Marcelo Restori
Elenco: Carla Cassapo, Fábio Cunha, Luciana Paz, Fábio Rangel, Alexandre Vargas e Jeremias Lopes, Bia Noy (atriz recém chegada de Paris, onde atuou por 5 anos), Fredericco Restori (ator mirim)
Bailarinas: Aline Karpinski (também coreógrafa), Iandra Cattani, Ju Rutkowski, Carol Dias e Fabi Martins
Coreografia: Aline Karpinski
Cenários e ambientações: Luiz Marasca.
Trilha especialmente composta: 4 Nazzo e Cláudio Bonder
Desenho de luz: Veridiana Matias
Elaboração de projeto: Alexandre Vargas
Ass. de produção; Elenice Zaltron
Preparação vocal: Marlene Goidanich
Maquiagem: Juliane Senna
Resp. pela prep. de rappel: Fábio Cunha
Videos: Coletivo Incosciente (Frederico Ruas.e Zeca Brito)
Fotos e arte: Fernando Pires
Figurinos: Daniel Lion
Produção, divulgação e realização: Falos & Stercus

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