12/10/2015

Guiomar, A Filha Da Mãe (PE)




Augusta Ferraz, um dos grandes nomes do teatro pernambucano, interpreta Guiomar, uma louca professora de história. Com o texto de Lourdes Ramalho, escrito especialmente para a Augusta, a atriz representa ao público a sua versão de como foi construída a história do Brasil. Inicialmente, o espectador é colocado à escuta dos causos que estão sendo contados. É perceptível o grande trabalho vocal da atriz. Augusta Ferraz apresenta exemplar domínio de sua voz quanto ao sotaque utilizado pela personagem, predominando o português de Portugal, fazendo com que o espectador preste maior atenção ao texto dito para melhor compreensão deste. Principalmente onde há canções em que, ao mesmo tempo em que são executadas com tamanha excelência, levam-nos ao sertão nordestino.


Por diversas vezes eu sentia o calor da região, a seca, a miséria, as dores da personagem. Tudo isso a partir da voz de Guiomar e, também, da iluminação. Cores quentes. Alaranjadas. Avermelhadas. Sensações que eram transmitidas aos olhos do espectador. A transmissão de sensações aumentava gradualmente durante o espetáculo. Houve o momento em que as luzes da plateia foram todas acesas para, então, Guiomar entrar em contato direto com o público.


"O senhor aí tem um trocadinho?"
"A senhora tem uma bala? Prova primeiro para eu ter certeza que não é veneno."
O público tornava-se protagonista nessa cena de interação.
O público tornava-se protagonista nessa representação da realidade.
Por quantos moradores de rua passamos durante o dia?
Quantos deles nos pedem algo?
A quantos deles atendemos aos seus pedidos?
Você já conversou com algum deles?
Você já olhou nos olhos de algum deles?



Olhos que gritam. Gritam verdades que não estamos acostumados a vivenciar. Acreditar. Enxergar.


Enxergamos não só uma peça de teatro. Mas uma representação forte da realidade. Aquela que não faz parte da maioria das realidades ali presentes.


Quantas Guiomar existem por aí?
Quantas?!
Quantas...


Por Manu Goulart



Ficha Técnica

Direção: Moncho Rodrigues e Augusta Ferraz
Autor: Lourdes Ramalho
Dramaturgia cênica: Moncho Rodrigues
Atuação, desenho de luz, adereços, pesquisa musical e administração: Augusta Ferraz
Figurino: Marcos Pinto
Assistência de produção e palco, fotografia, filmagens: Alcides Ferraz
Montagem e execução de iluminação: João Guilherme de Paula
Realização: Grupo Pharkas Serthanejaz, Augusta Ferraz
Duração: 70min


Meredith Monk & Vocal Ensemble: The Soul’s Messenger (EUA)




Ah – Mmm – Ah – Mmm – Ah – Mmm
Hey – Hey – Hey – iiiiiii
Ah! – Ahhhh – LaLaLaLaaaaa – LoLoLo – Si Na Maaaa    
Trees - Trees - Oh trees - Trees - Birds - Coffe - Coffe - Coffe - Do you remember? - Do you remember? - Do you remember?

           
Pra mim não existe descrição melhor do espetáculo musical de Meredith Monk do que essa: um anjo no palco e seus companheiros alados. Olha, pode parecer bobagem ou até mesmo incabível essa comparação. Mas não é. Se você esteve lá você sabe. Dividir o mesmo tempo e espaço com a voz de Monk e sua companhia é se permitir ouvir a ousadia solar e lunar da criação. A sensação de que presenciamos um momento raro ficou marcada em mim. Por isso eu digo que somente um ser estelar poderia construir paisagens, sentimentos, pensamentos, sensações e vibrações com a própria voz. É como se tudo o que a voz de Monk tocasse sofresse uma alteração química e física em sua constituição original.


Era interessante sentir a plateia em estado de contemplação, leveza, serenidade, encantamento. O tempo parou e cada um mergulhou na sua infância, nos momentos marcantes de amor e horror, nos traumas e nos exemplos positivos. Viagem é a palavra perfeita para descrever a experiência “Monk”. E você pode ter certeza que ninguém trilha o mesmo caminho nessa viagem.


Preciso admitir que eu gostaria de ter permanecido nesse estado profundo de interiorização, de mergulho interno e encontro consigo. Mas teve uma hora que eu me senti incomodado e cheguei até a sentir um desconforto, pois parecia que o tempo estava demorando para passar. A bolha “Monk” rompeu e eu me vi escutando a respiração profunda da espectadora do meu lado que parecia estar em um sono profundo.




De repente a “grande sacada” do espetáculo, sua essência, a linguagem própria, inventada, os ruídos para entrar em transe e o chamado dos anjos pareceu perder completamente o sentido e eu caí da minha nuvem de encantamento. Pensei que muitos devem sentir isso em determinado momento. Pensei em quantas pessoas sentiriam isso durante todo o espetáculo e naquelas que nem por um segundo sentiram isso. Pensei: essa obra de arte é universal, é para todos. Mas ao mesmo tempo não, é para poucos. É para os que têm gosto refinado e muito conhecimento teórico. Capacidade de abstração. Será?


Como eu gostaria de parar de pensar e apenas curtir. Sentir. É isso! Talvez esse seja o segredo da experiência “Monk”. A ênfase está no sentir. A partir do momento em que a mente interrompe a leitura intimista do ser que sente, a mágica desaparece. O “sentido” desaparece. Estou certo de uma coisa: a mensagem da alma está muito além dos domínios mentais. É o eterno mistério que pulsa e vibra em cada um, que está registrado encima e embaixo, à esquerda e à direita de cada um, mas ainda assim podemos ignorá-lo. Monk é uma experiência única de abertura de um olho interno, a grande porta da percepção.


Por Guilherme Nervo





Ficha Técnica

Composição, voz e teclado: Meredith Monk
Músicos: Katie Geissinger (voz), Allison Sniffin (voz e teclado) e Bohdan Hilash (instrumentos de sopro de madeira)
Iluminação: Noele Stollmack
Design de som: Lucas Indelicato
Produção: Peter Sciscioli

Duração: 90min

11/10/2015

Como A Lua (PE)




Tudo o que nasce morre
Tudo o que morre volta a nascer
Como a lua
Como a lua


Não foi só a música que continuou em minha mente após ter assistido ao espetáculo do Grupo Mambembe nesta tarde de sábado, mas todos os lugares por onde fui levada enquanto o assistia.


A peça de José Manoel Sobrinho conta não só a história de amor do índio Paya pela belíssima índia Cólon, mas a história da existência. O nascer, morrer, permanecer, renascer, conhecer. As nossas descobertas.


Para isso, somos levados, primeiramente, à realidade de Paya e Cólon. A música é o nosso meio de locomoção. Com a fantástica direção de Samuel Lira, e também com sua cativante presença cênica; todo o elenco transforma o palco do SESC em um cenário mitológico. Estamos aonde acreditamos que estamos? Basta fechar os olhos para logo se sentir junto ao simpático casal. Ouço o barulho de um riacho - ou seria uma cachoeira? Olha! O canto dos passarinhos! E todos os demais animais presentes nessa floresta.




Presença. Atores extremamente presentes. Mesmo enquanto estão concentrados na musicalidade, ou na atuação cênica. E o que dizer quando há um público participativo? Vemos a comunicação entre espectador e ator. A peça torna-se um canal entre aquele que assiste e aquele que apresenta. Olho ao redor. Crianças, adultos, todos estão conectados.


A conexão também é satisfatória entre a história de Paya e Cólon com a dos colegas de classe da vida urbana. A descoberta do amor, a ingenuidade, os questionamentos, apesar de possuírem aspectos característicos do local onde se encontram - "selfie", "cabra-cega" - a essência é a mesma. Independente do local onde algo ocorre, há uma essência que une. Enquanto Paya dá cambalhotas e se exibe para a indiazinha Cólon, os amigos descobrem a magia do primeiro beijo.


E magicamente, as histórias se unem. Algo faz com que a realidade de Paya se junte ao dos coleguinhas. Mas como? Como? Eles vivem em mundos tão distantes. Culturas distintas. Como?! Apesar de o modo de vida ser diferente, o essencial da vida é semelhante. Todos brincam, têm suas dúvidas e possíveis respostas. Todos sentem. Amam. Eis o essencial.

E essa essência foi o que me prendeu durante todo o espetáculo.


Por Manu Goulart



Ficha Técnica

Direção: José Manoel Sobrinho
Autor: Vladimir Capella
Elenco: Luiz Veloso, Kamila Souza, Geysa Barlavento, Marinho Falcão, Pascoal Filizola, Samuel Lira, Sandra Rino e Tiago Gondim
Trilha sonora: João Falcão, André Filho e Alan Sales
Desenho de Luz: Luciana Raposo
Operação de luz: Rodrigo Oliveira
Cenografia e figurinos: Cláudio Lira
Direção musical, arranjos e preparação vocal: Samuel Lira
Fotografia: Laryssa Moura

Produtor executivo: Elias Vilar

Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea (RS)




É a verdade o que espanta em Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea. O homem existiu. Sua história existiu. Suas palavras existiram. Ao assistir a peça não soube diferenciar o que mais chamou minha atenção: o homem e sua forma de ver o mundo ou a excelente montagem do grupo Depósito de Teatro. Sem dúvida, os dois. Fui profundamente tocado por essa montagem, não sabia o que esperar, pensei, inclusive, que eu não ia gostar. Muito pelo contrário, me diverti, me emocionei, ri, aprendi.


A cena em que os pais de Bukowski aparecem me marcou e a partir dali eu tive a certeza de que o espetáculo só iria crescer e foi exatamente assim. Comecei a refletir sobre todos esses meninos, meninas, jovens e até mesmo adultos que não se ajustam ao mundo como ele está, que têm muita dificuldade em representar o teatro que todos nós formamos e conservamos, século após século, com direito a normas de conduta, o que é certo e errado, um sistema econômico brutal no qual ou você se ajusta ou você margeia a sociedade. Está certo que essas pessoas não fazem parte da parcela hegemônica social, mas antes, contra hegemônica. Representam tudo aquilo que está contra o sistema massivo e manipulador que podemos chamar de “Matrix”, fazendo uma referência ao filme. Se essa parcela pode ser comparada a um vírus, a questão é como ser um vírus na célula, ao invés de fora dela. 


Bukowski encontrava no álcool e no tabaco uma forma de sobreviver a um mundo hipócrita: silenciosamente violento e profundamente reprimido. Também gostava de mulheres e é interessante como algumas viam seu trabalho: com desprezo, deboche, dizendo “até mesmo eu consigo escrever isso!” – frase que já ouvi de muitas pessoas e tenho sempre a mesma reação: “- Então por que não é você no lugar dele?!”, sabe? – às vezes desvalorizando momentos alegando que ele só queria matéria prima para seus escritos.




A verdade é que não importa o quanto Bukowski se destrua, não importa o quanto ele fale mal do mundo ou mesmo não veja um futuro digno: não importa. Ele está ali. É um ser como nós e ao mesmo tempo diferente. Incrível. Adoraríamos ter um tio como ele ao mesmo tempo em que detestaríamos. Bukowski não passa despercebido e faz impossível que o ignoremos ou às suas palavras, nem que seja para rotulá-lo de “maldito”.


O cenário é realista e composto por muita sujeira, várias garrafas vazias, carteiras de cigarro amassadas, cigarros abertos espalhando tabaco, mesas, cadeiras e uma parte de uma residência que é o local aonde morava Charles Bukowski, com uma escrivaninha, uma geladeira e outros apetrechos. Tudo isso ajuda na atmosfera criada pela peça, mas eu ouso dizer que o trabalho da companhia Depósito de Teatro é de um nível tão bom, que dispensa todo o cenário, por si só os atores já conquistam o interesse da plateia e a atmosfera de caos, destruição, desordem, e rebeldia contra o sistema capitalista. Entretanto, por incrível que pareça, a característica mais marcante da montagem não é nenhuma destas e sim o toque profundo de humanidade que o poeta tinha em si – essa é a tônica essencial da peça e é o que faz ela ser tão digna de elogio.


Toda a estrutura narrativa da peça, que é não linear, em conjunto com as atuações efervescentes, cheias de entrega, paixão e verdade – especialmente a de Roberto Oliveira e da atriz com a personagem de voz rouca e muito doente, na cama -  intensificam o poder de qualidade e o valor autêntico dessa obra que eu recomendo. O aspecto que eu aprofundaria mais é a infância, adolescência e juventude de Charles Bukowski, especulando com carinho toda a formação desse homem, a origem de suas indignações, frustrações e insatisfações. Assim como a origem de seu espírito revolucionário, sua coragem de falar e viver seus próprios ideais, a força de suas palavras e também a repercussão delas. Muito importante ressaltar a minuciosa pesquisa do grupo, realmente mergulhando no mundo de Bukowski e consolidando uma peça teatral fiel à história e à literatura de um homem que dizia que tudo o que escrevia era autobiográfico.


Por Guilherme Nervo




Ficha técnica

Direção e dramaturgia: Roberto Oliveira
Elenco: Aline Armani, Cris Eifer, Elisa Heidrich,  Marcelo Johann, Pitti Sgarbi e Roberto Oliveira
Trilha sonora: Francine Kliemann, Roberto Oliveira e Kevin Brezolin
Produção executiva: Joice Rossato
Iluminação: Fabiana Santos
Cenografia: Modesto Fortuna
Figurino: Elisa Heidrich
Operação de som e vídeo: Fernanda Fávero
Duração: 80min


10/10/2015

P-U-N-C-H (RS)




Acredito que essa tenha sido a percepção mais difícil de escrever. Há tempos, eu não presenciava algo semelhante. Sabe quando uma pessoa muito sensível vai assistir a uma peça tão forte que lhe toca no que há de mais íntimo e profundo? É necessário um tempo para compreender tudo o que começa a passar por nós. Assim, só agora consigo escrever sobre. 


Eu já sabia do que a peça tratava, e me interesso bastante pela temática escolhida. E colocar isso tudo numa ópera é uma ideia deveras tentadora. Pois é essa junção das artes que dá maior intensidade ao que será apresentado. Dança, música, teatro... Quando é bem feito, toca o público. E foi isso o que aconteceu. Bastou olhar as expressões dos espectadores, seus comentários durante o espetáculo, a forma como eles saíram do teatro, etc. 


Começando pela cena inicial: o som da orquestra junto aos movimentos lentos do bailarino atravessando o palco. Essa mescla entre sonoridade intensa e movimentação lenta se repete pela peça. O resultado em mim foi uma tensão pelo meu corpo. Era como se algo estivesse sendo preparado para ser realizado. Como se cada micromovimento resultasse na força e agilidade representada pelo som dos violinos. Como se cada lento e calmo micromovimento tivesse outra intenção: a da pressa e da voracidade. 


 Movimentos que se repetem. Movimentos que se repelem. Que se aproximam. Que se chocam. Que gritam. Que sussurram verdades em nossos ouvidos cardíacos, emotivos. 




 Por uma noite. Por apenas 1h40min de uma noite, eu pude ter uma clara ideia do que cada uma daquelas pessoas sentiu. A dor, as dúvidas, o medo, as incertezas. Cada momento me surpreendia. Independente de eu ter conhecimento ou não do que ocorreria - afinal, muitos amigos que assistiram, comentavam bastante e demonstravam o quanto o espetáculo os afetou. Conhecendo ou não, os momentos me impressionavam. Era mais tocante o "Como aconteceria" ao invés de "O quê aconteceria". 


Um dos momentos era a cena em que uma das bailarinas tinha o cabelo raspado em cena. Eu só percebi que aquilo aconteceria quando enxerguei a máquina no bolso do ator que a carregava. O instante, por mais rápido que tenha acontecido, tornou-se uma tortura. Pessoas ao meu redor murmuravam: "Ai não", "Não, não, não...!". E eu refletia se a dor maior era do público ou das pessoas que passaram por isso naquele período. Qual é a distinção entre essas dores? Essa cena foi tão chocante que eu não percebi que os demais atores tinham trocado de figurino em cena. Só entendi quando os vi com outra roupa. Os meus olhos só acompanhavam o movimento preciso da máquina pelos cabelos da atriz e o olhar expressivo dela, como se estivesse encarando algo. A si mesma. A situação. Ou cada um de nós presente naquela plateia. 


Apesar de ter momentos que nos perturbem emocionalmente, o espetáculo apresenta outros que podem demonstrar graça ao público. Um deles é a cena dos dois generais na mesa de jantar. A tensão inicial logo se mostra com um belo toque de sarcasmo e ironia em relação ao íntimo daqueles dois homens de poder. Até onde vai toda a brutalidade que demonstram? O que há no mais profundo daqueles seres? 


O que há de mais profundo em nós? Somos espectadores passivos àquilo que está sendo apresentado em cena? Acredito que, pelos olhares e feição de cada um presente, P-U-N-C-H foi um belo de um "soco" em nossa consciência. Em nossos sentimentos. 


Por Manu Goulart




Ficha Técnica

Direção Geral, Direção Musical e Concepção: Christian Benvenuti
Direção Coreográfica: Silvia Wolff
Direção Cênica: Alexandre Vargas
Criação de Luz: Maurício Aguiar de Moura
Cenografia: Elcio Rossini
Criação dos Figurinos: Carolina Di Laccio
Direção de Vídeo: Eny Schuch
Produção: Débora Plocharski Borges/Tribolê Produtora
Elenco de Intérpretes/Criadores: Alessandra Souza Alexander Kleine Andrew Tassinari Consuelo Vallandro Cristiane Bocchi Débora Jung Bonzanini Gabriela Guaragna Giuli Lacorte Guilherme Conrad Gustavo Duarte Jaime Ratinecas Jeferson Cabral Julia Bueno Walther Luana Camila Luciano Souza Manuela Miranda Matina Banou Renan Santos Silva Viviane Gawazee
Assistência de Produção: Karenina Benvenuti e Matina Banou
Identidade Visual:Christian Benvenuti

14/09/2014

A memória que não queima



O Theatro São Pedro foi o lugar que materializou a encenação de Incêndios em nossa cidade. O ato de ir experienciar esse trabalho no momento atual em que vivemos torna-se uma metáfora na vida de todos que estiveram lá, pois assistimos aos conflitos do oriente médio, assim como os vemos em forma de noticiário nesta noite. Logo, a encenação ao ser realizada soa como um ato político de radical força humana.



A encenação é dirigida por Aderbal Freire- Filho e conta com um elenco grande, de oito atores, que em sua maioria interpretam mais de um papel, para assim darem conta da dramaturgia e de toda história.



A aridez é um elemento visual que extrapola a magnitude do cenário- estruturas de grades vazadas, enormes, que lembram ao muro da faixa de Gaza- e envolve a interpretação, a luz, o jogo de cena. As vidas secas a partir do nó do destino feito pela guerra é aridez do silêncio da vida da protagonista, e consequentemente de todos que a rodeiam.



A história começa com o depoimento de alguém que não está mais viva materialmente. Esse é o nó inicial desta tragédia contemporânea. Vemos uma jovem perder o amor de sua vida, e ser separada de seu filho no momento do nascimento. Com isso, ela promete a sua avó não ser uma mulher que se deixa levar as forças patriarcais de sua cultura. A jovem sai da cidade e volta sabendo ler e escrever, fato que fará encontrar sua companheira na batalha por achar seu filho. Ao mesmo tempo, vemos a busca anos depois de sua família por entender o silêncio de sua mãe, a mesma jovem da qual falamos. Os filhos gêmeos vão atrás de sua história e acabam descobrindo a verdade sobre o passado da mãe. Eles descobrem que sua mãe era uma guerrilheira, que lutou pelo fim dos conflitos indo matar o seu cerne, o chefe das milícias. Assim, ficou presa e como todas as mulheres da prisão fora violada várias vezes por um mesmo homem. Ao decorrer da trama vemos que seu carrasco era seu filho tirado de seus braços há anos atrás. E a busca de seus filhos por entender o silêncio da mãe termina quando podem entregar as cartas destinadas ao seu irmão, que agora descobrem ser também seu pai.



É difícil explicitar em palavras um enredo tão bem feito, uma trama que nos conecta durante as duas horas de peça de uma forma arrebatadora. Este feito é de Wadji Mouawad, escritor da peça, que propõe uma quebra no espaço e tempo da ação, fazendo com que os tempos distintos da narrativa aconteçam ao mesmo tempo. Todavia, a direção de Freire é primorosa no que diz respeito à concretude da atmosfera do texto. As cenas são dinâmicas e com um nível alto de jogo entre os atores.



Quando refletimos sobre atuação, nos cabe dizer que os atores levam com grande energia à história com momentos de interpretações sinceras e poéticas. No entanto, os atores que interpretavam os filhos (gêmeos) da protagonista poderiam ter uma densidade maior, pois pareciam simplesmente representar a ideia dos personagens, sendo que carregavam importância no desenrolar da história.



Por fim, vemos em Incêndios a força da palavra, das promessas que fazemos e a força do destino fazendo-se presente em um universo já destroçado pelas marcas dos conflitos territoriais. Porém, o ser humano também é um caminho dentro destes conflitos e esta peça reverbera os estilhaços desses acontecimentos no cotidiano das pessoas.

Ficha Técnica: Texto: Wajdi Mouawad
 Tradução: Angela Leite Lopes
 Direção: Aderbal Freire-Filho
 Elenco: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Fabianna de Mello e Souza Julio Machado e Isaac Bernat Cenografia: Fernando Mello da Costa
 Iluminação: Luiz Paulo Nenen
 Figurinos: Antonio Medeiros
 Trilha Sonora: Tato Taborda

 Direção de Produção: Maria Siman
 Produção Executiva: Luciano Marcelo
 Produtores: Maria Siman, Felipe de Carolis e Marieta Severo
 Produtor associado: Pablo Sanábio
 Idealização do Projeto: Felipe de Carolis Realização: Primeira Página Produções, Emerge e Teatro Poeira

Por Jeferson Cabral

Fluxo de Morte: Aonde o Fogo Toma Conta



Aonde o fogo toma conta não resta vida, mas vestígios de vida. Sobreviventes. Aonde o fogo toma conta há o domínio de uma história: a história da devastação. Aonde o fogo toma conta há mãe e filho derretendo, pendurados na janela de um ônibus em chamas. Aonde o fogo toma conta há sempre o lado sombrio da humanidade. Aonde o fogo toma conta alastra-se a chama da morte, sofrimento e perda. Aonde o fogo toma conta há incêndios. Tratam-se de incêndios de dentro, aqueles que nos sufocam de raiva e ódio; incêndios de fora, aqueles que nos causam transtorno e apreensão; incêndios literais, aqueles que só de lembrar nos causam pânico e desespero. Todos incêndios reais.



Incêndios é a história de uma mulher que queimou por dentro, por fora e por todos os lados. O próprio demônio encarnado em mulher. Sim. Mas esse não é qualquer demônio. Assim como há fogo: ódio, raiva, fúria e vingança. Há também muita água: amor, persistência, cuidado e carinho. Vontade de vencer e cumprir uma velha promessa: jamais afundar na miséria. O que motivou uma mulher a permanecer cinco anos calada? A ser enterrada nua e sem caixão? A não mencionar a palavra “filho” em seu testamento? A proferir a frase: “a infância é uma faca enfiada na garganta”?



Através de um roteiro extremamente fértil, uma trama imprevisível, interessante e que verdadeiramente rouba a atenção do expectador; a peça de teatro Incêndios procura responder essas perguntas e tantas outras desdobrando e revelando o caráter de uma mulher que é uma dinamite. A princípio temos a imagem de uma mãe severa, dura, fria, absolutamente distante. O que se acentua ainda mais quando a personagem entra em cena vestida de preto e dá suas primeiras falas. A atriz hipnotiza a plateia. Qual é o segredo de Marieta Severo? Eu acredito que seja o poder e a intenção de sua voz, que sai como uma rajada de flores secas ou (principalmente) como uma rajada de navalhas. Tudo depende do que a personagem deseja nos passar, do que ela vivencia no decorrer da peça. Lembrando que as “flores”, além de serem momentos raros, são definitivamente secas. Podem ser da cor mais brilhante, encantadoras quando vistas de longe, mas não emitem aroma. Estão mortas.



Morte é com certeza um dos temas principais da peça, assim como o sofrimento, a perda, o choque e a injustiça. Quanto um ser humano pode suportar? Continuamos humanos depois de matar? Sangue deve ser respondido com sangue? Não espere momentos felizes em Incêndios, aqui a realidade misturada com ilusão é muito dura. Se essa era a ideia que o cenógrafo queria passar, ele mereceu o prêmio APTR de 2013 por melhor cenografia. São grades enferrujadas que se revelam portas para a passagem do elenco e dos outros elementos do cenário (cadeiras, mesas, bicicleta, baldes, etc). O solo é amarelado e opaco, tudo tem um aspecto sujo, destruído e especialmente claustrofóbico. Essa última característica é sutil porque no centro não há elementos de cenografia. Mas a sensação de prisão, guerra, exílio e submundo permanece durante toda a peça, propiciando o clima ideal. O que destoa muitas vezes é a repetida trilha sonora: fortes ruídos com um homem cantando aos gritos e de maneira grave, o que lembra o estilo musical heavy metal. A princípio conectamos essa música com um dos filhos da protagonista, Simão, o jovem lutador de boxe amador. Quando vemos a mesma música se repetir em outras cenas, que aparentemente nada têm a ver, surge a pergunta: isso é proposital? Claro, talvez a direção quisesse realmente investir em uma linguagem contemporânea, misturando, cruzando e inter-relacionando tempos e espaços diversos.



Se o roteiro é o primeiro ponto positivo da peça, o segundo é a linguagem épica e contemporânea. Quando a filha Jane está sozinha em seu apartamento escutando as fitas que gravaram os dias silenciosos de sua mãe, em busca de uma resposta no silêncio da mãe, ela própria aparece como andarilha junto de sua parceira de viagem, anos atrás. O que as separa? Anos? Ali só vemos um elemento que distancia: as roupas. Enquanto as mulheres vestem roupas gastas e mais antigas, a garota veste uma roupa moderna e bem alinhada. Mas basta elas darem mais um passo e ambas estarão sob o mesmo holofote, sob a mesma luz, sob o mesmo tempo. Tudo isso confunde o expectador de forma inteligente, obviamente já revisitada por muitas outras peças, mas aqui continua com seu brilho. A filha faz uma pergunta como se avistasse a própria mãe no passado. E a mãe responde de acordo com o contexto do passado. Mas há uma sintonia de tempo, uma sintonia entre mãe e filha muito interessante, é uma cena bastante plástica. Linguagem épica porque as personagens narram a história e há alguns elementos de distanciamento ou estranhamento brechtianos, como por exemplo quando a vizinha entra com a música heavy metal e pede diretamente ao operador de som que baixe a música, ou quando as personagens se referem ao espaço físico do teatro como o que é, um teatro. Triunfo do autor Wajdi Mouawad, a narração da história pelos personagens estimula a nossa imaginação. O que seria impossível sem o talento do elenco, especialmente de Marieta Severo e Kelzy Ecard.



O desempenho do elenco também é outro ponto positivo. Basta afiar a atuação dos dois filhos do tempo presente. Ambos precisam trabalhar mais articulação e intenção vocal. Também recomendaria o cuidado com os gestos cênicos caricatos, especialmente do filho, que revelam uma construção de personagem menos cuidadosa, com menos critérios e mais exageros, lugares comuns, como por exemplo quando ele bate no peito repetidas vezes para dizer à irmã que eles têm apenas um ao outro. Não podemos esperar que atores menos experientes estejam acima ou no mesmo nível de atores mais experientes, mas podemos esperar, sim, empenho, dedicação e desenvoltura. O terceiro filho me causou muito desconforto e repulsa com sua maneira de atuar, com seu inglês misturado com português e com a sua própria postura. No início eu pensei que fosse uma falta de preparo dele, mas depois cheguei à conclusão de que ele fez exatamente o que tinha de fazer, desempenhou seu papel de um ser que, além de possuir doença mental, não sabe como lidar com isso nem se vê com alguma coisa a ser trabalhada. Kelzy Ecard apresenta o mesmo nível de desempenho de Marieta Severo, ambas estão muito potentes em cena. Destaco duas cenas: primeiro a que as duas dialogam sobre como agir perante a situação em que se encontram, enquanto Kelzy está ávida por sangue, Marieta tenta frear sua sede por vingança justificando que mais sangue não vai mudar nada. Claro que ela vê motivos para a vingança da amiga, mas traz uma outra perspectiva pra ela, de revolução e consolo. Pede para que a amiga confie nela, ou seja, que aceite a morte de apenas um homem através de não uma, nem três, mas duas balas gêmeas. A segunda cena se dá no final da peça, quando Marieta está dando uma de suas últimas falas, novamente de vestido preto, no tribunal, quando se dá conta daquilo que a faz ficar em silêncio para o resto de sua vida. Nesse momento ela agarra a cadeira que está na sua frente e a potência de sua voz atinge seu ápice. É uma verdadeira aula de interpretação em formato artístico.



Incêndios é uma peça de conteúdo amplo porque trata de assuntos, personagens e situações genuinamente humanos. Precisamos relembrar que nem sempre a vida será como queremos, mas que a força existe dentro de nós e podemos sempre cumprir nossas velhas promessas de superar a miséria, formar família e descobrir verdades avassaladoras. Se isso nos provocar anos de silêncio, bom, isso é um risco. Mas a força está ali, pronta para ser ativada e reativada quando precisarmos. Basta alcançar!



Ficha Técnica: Texto: Wajdi Mouawad
 Tradução: Angela Leite Lopes
 Direção: Aderbal Freire-Filho
 Elenco: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Fabianna de Mello e Souza Julio Machado e Isaac Bernat Cenografia: Fernando Mello da Costa
 Iluminação: Luiz Paulo Nenen
 Figurinos: Antonio Medeiros
 Trilha Sonora: Tato Taborda

 Direção de Produção: Maria Siman
 Produção Executiva: Luciano Marcelo
 Produtores: Maria Siman, Felipe de Carolis e Marieta Severo
 Produtor associado: Pablo Sanábio
 Idealização do Projeto: Felipe de Carolis Realização: Primeira Página Produções, Emerge e Teatro Poeira

Por Guilherme Nervo