É a verdade o que espanta em
Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea. O homem existiu. Sua história
existiu. Suas palavras existiram. Ao assistir a peça não soube diferenciar o
que mais chamou minha atenção: o homem e sua forma de ver o mundo ou a
excelente montagem do grupo Depósito de Teatro. Sem dúvida, os dois. Fui
profundamente tocado por essa montagem, não sabia o que esperar, pensei,
inclusive, que eu não ia gostar. Muito pelo contrário, me diverti, me
emocionei, ri, aprendi.
A cena em que os pais de
Bukowski aparecem me marcou e a partir dali eu tive a certeza de que o
espetáculo só iria crescer e foi exatamente assim. Comecei a refletir sobre
todos esses meninos, meninas, jovens e até mesmo adultos que não se ajustam ao
mundo como ele está, que têm muita dificuldade em representar o teatro que
todos nós formamos e conservamos, século após século, com direito a normas de
conduta, o que é certo e errado, um sistema econômico brutal no qual ou você se
ajusta ou você margeia a sociedade. Está certo que essas pessoas não fazem
parte da parcela hegemônica social, mas antes, contra hegemônica. Representam
tudo aquilo que está contra o sistema massivo e manipulador que podemos chamar
de “Matrix”, fazendo uma referência ao filme. Se essa parcela pode ser
comparada a um vírus, a questão é como ser um vírus na célula, ao invés de fora
dela.
Bukowski encontrava no
álcool e no tabaco uma forma de sobreviver a um mundo hipócrita:
silenciosamente violento e profundamente reprimido. Também gostava de mulheres
e é interessante como algumas viam seu trabalho: com desprezo, deboche, dizendo
“até mesmo eu consigo escrever isso!” – frase que já ouvi de muitas pessoas e
tenho sempre a mesma reação: “- Então por que não é você no lugar dele?!”,
sabe? – às vezes desvalorizando momentos alegando que ele só queria matéria
prima para seus escritos.
A verdade é que não importa
o quanto Bukowski se destrua, não importa o quanto ele fale mal do mundo ou
mesmo não veja um futuro digno: não importa. Ele está ali. É um ser como nós e
ao mesmo tempo diferente. Incrível. Adoraríamos ter um tio como ele ao mesmo
tempo em que detestaríamos. Bukowski não passa despercebido e faz impossível
que o ignoremos ou às suas palavras, nem que seja para rotulá-lo de “maldito”.
O cenário é realista e
composto por muita sujeira, várias garrafas vazias, carteiras de cigarro
amassadas, cigarros abertos espalhando tabaco, mesas, cadeiras e uma parte de
uma residência que é o local aonde morava Charles Bukowski, com uma
escrivaninha, uma geladeira e outros apetrechos. Tudo isso ajuda na atmosfera
criada pela peça, mas eu ouso dizer que o trabalho da companhia Depósito de
Teatro é de um nível tão bom, que dispensa todo o cenário, por si só os atores
já conquistam o interesse da plateia e a atmosfera de caos, destruição,
desordem, e rebeldia contra o sistema capitalista. Entretanto, por incrível que
pareça, a característica mais marcante da montagem não é nenhuma destas e sim o
toque profundo de humanidade que o poeta tinha em si – essa é a tônica
essencial da peça e é o que faz ela ser tão digna de elogio.
Toda a estrutura narrativa
da peça, que é não linear, em conjunto com as atuações efervescentes, cheias de
entrega, paixão e verdade – especialmente a de Roberto Oliveira e da atriz com
a personagem de voz rouca e muito doente, na cama - intensificam o poder de qualidade e o valor
autêntico dessa obra que eu recomendo. O aspecto que eu aprofundaria mais é a
infância, adolescência e juventude de Charles Bukowski, especulando com carinho
toda a formação desse homem, a origem de suas indignações, frustrações e
insatisfações. Assim como a origem de seu espírito revolucionário, sua coragem
de falar e viver seus próprios ideais, a força de suas palavras e também a
repercussão delas. Muito importante ressaltar a minuciosa pesquisa do grupo,
realmente mergulhando no mundo de Bukowski e consolidando uma peça teatral fiel
à história e à literatura de um homem que dizia que tudo o que escrevia era
autobiográfico.
Por
Guilherme
Nervo
Ficha técnica
Direção e dramaturgia: Roberto Oliveira
Elenco: Aline Armani, Cris
Eifer, Elisa Heidrich, Marcelo Johann, Pitti Sgarbi e Roberto Oliveira
Trilha sonora: Francine
Kliemann, Roberto Oliveira e Kevin Brezolin
Produção executiva: Joice
Rossato
Iluminação: Fabiana Santos
Cenografia: Modesto
Fortuna
Figurino: Elisa Heidrich
Operação de som e vídeo:
Fernanda Fávero
Duração: 80min
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