21/12/2009

Combustão



“O filho de José e Maria nasceu como todos os filhos dos homens, sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por esse mesmo e único motivo.”

Por volta das nove horas da noite, adentrei a sala 402 da Usina do Gasômetro. Postavam-se lá três figuras sorumbáticas: uma feminina, no centro, e duas masculinas nas laterais. A sala era sufocante, mesmo a essa hora da noite o calor imperava sem trégua. Estava prestes a descobrir que o texto, assim como toda a concepção da peça, seria igualmente sufocante.

"O CORDEIRO DE DEUS" é dirigido por Luís Fabiano e trata-se de uma livre inspiração de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", romance de 1991 escrito por José Saramago. Sendo Cristo uma das personagens históricas mais enigmáticas (que, inclusive, até os trinta anos era obscura) principalmente ao que concerne o seu nascimento e formação enquanto homem, existem múltiplas especulações. O romance aqui adaptado pode ser uma delas.

Para o papel de Jesus Cristo, uma mulher. Larissa Tavares interpreta o cordeiro, um filho de Deus vulnerável, contestador e absolutamente humanizado. Jesus é fraco e perturbado, sempre obrigado a submeter-se à figura divina, que não passa de um carrasco pomposo. Com o peito nu e maquiado, Deus veste um pano de seda carmim. É essencialmente irônico e muito rancoroso, parecendo estar à beira da explosão. Seu texto é repleto de intenções, a dúvida não existe. Em contraponto, Lúcifer (Elielto Rocha) dá o texto com mais imparcialidade, é sintético e não aparenta carregar culpa ou remorso. Também veste um pano de seda comprido, porém negro.

Boníssima preparação corporal da trupe, mesclando originalidade e poesia condizentes com a obra moderna e anti-religiosa de Saramago. Julgo este ter sido um ponto positivo para um espetáculo denso, mas seja feita uma ressalva: apesar da sensualidade (muito bem-vinda) entre Deus e seu filho ser bem explorada com o tango, a extensão da dança em conjunto com o texto, tornou-se cômica e risível. Creio que esse não era o objetivo, mas também, não é nada gritante. Gritante talvez seja a jovialidade de Larissa, que faz um mártir apagado, uma vítima que não me despertou piedade. A piedade fica nas mãos de Lucas Simas, com seu Deus sensual e cáustico. Características estas que, geralmente, são encontradas no diabo. É o anjo rebelde quem incita os pecados da carne, quem produz medo e luxúria com mulheres nuas.

A narrativa do espetáculo se passa anteriormente ao nascimento de Cristo. É o processo de instrução divina com o filho, este deverá banir o paganismo e instalar uma religião única e verdadeira, com um Deus único e verdadeiro: o catolicismo. Que a fé reine sobre a raça humana e os fiéis perdoem-se de seus pecados. Aos infiéis e blasfêmios, tortura e esquartejamento. Os aspectos mais negativos da religião são revelados.

Destaque para três cenas de impacto visual:
- a mesa sacra à luz de velas que ilumina um ser sôfrego e encurvado (Deus), a devorar carnes cruas e jogar os restos à Lúcifer.
- o momento em que os três vestem máscaras pálidas e o cordeiro, tal marionete, é encarcerado e manipulado pelo Pai.
- exausto, Jesus (cordeiro) está atirado numa superfície de ritual; Deus aproxima-se e cobre as pernas do filho com sua roupa, num acasalamento incestuoso.

O fim da peça surpreende: assistimos ao arrependimento de Deus e do diabo, dispostos à contemplar Jesus, o pueril e frágil Jesus.

12/12/2009

"Cometeu-se a Peça"



Dizia o Gênesis que o solo da Torre de Babel era fértil. A Cia Babel de Teatro tem, se não tudo, muito para dar certo. Que a pretensão do grupo seja comedida, diferentemente da Torre. Conjugo verbos no futuro porque a peça em questão é a primeira da companhia.

O animal predileto do Sr. Keuner é justamente o nosso mamífero quadrúpede: o elefante. Símbolo da união entre astúcia e força. "Por onde esse animal passa, deixa uma larga pista. Ele é camarada, entende brincadeiras. É tão bom amigo quanto bom inimigo. Suas orelhas são reguláveis: ele ouve apenas o que lhe interessa. Em toda parte é igualmente amado e temido. Ele tem uma pele espessa, na qual se quebram as facas; mas sua índole é delicada. Ele é capaz de ficar triste. É capaz de se enraivecer. Ele gosta de dançar.Ele ama as crianças e outros animais pequenos. Ele é cinza e chama a atenção com sua massa. Ele não é comível. Ele é bom trabalhador. Ele gosta de beber e fica alegre. Ele faz algo pela arte: fornece marfim." Esse trecho pertence à obra brechtiana "Histórias do Sr. Keuner".

"ELEFANTILT", com direção de Humberto Vieira, foi adaptado do "Apêndice: Filhote de Elefante". "Elefantilt" é a junção da juventude com a sabedoria, do discípulo com o mestre. O Estúdio de Fotografia La Photo dispunha mesas para a plateia, que ficava no mesmo nível dos atores. Somos parte da peça (nesse caso, um exercício) que, propositalmente, faz parte de outra peça. E não havia de ser diferente, tratando-se de Brecht.

Um batalhão de soldados de guerra reúnem-se em uma taberna a fim de amenizar a fadiga e esqueçer as mazelas com a velha e eficaz solução: a bebida.
Outra distração era uma representação artística exaltada pelo decadente escritor de peças que frequentava a taberna. Ele fazia questão de ressaltar a qualidade
de sua trupe e, principalmente, sua posição de dramaturgo; é ele quem inicia e finaliza a peça, com uma boa interpretação de Yheuriet Kalil.

Os soldados (interpretados pelas atrizes) mostram-se desnorteados e totalmente histriônicos ao apresentarem a tão aclamada peça, que tem uma narrativa absurda: o julgamento de um filhote de elefante (Vivian Salva) que, supostamente, tenha assassinado a mãe com uma jarra. O réu é julgado por uma bananeira (Tatiana Vinhais) e a lua (Daniela Guerrieri), faz parte do júri.

Contei umas cinco ou seis intervenções musicais com repertório que ia de "Another Brick In The Wall" a "Atirei Um Pau No Gato". O esquema das intervenções era o mesmo: a luz diminuía e a neutralidade corporal e facial tomava conta. Creio que essa seja uma das estratégias do distanciamento proposto por Bertolt. Lembro de ter rido bastante.
O figurino: ah, o figurino! Palmas para Fabrízio Rodrigues, que manejou um figurino muito versátil e criativo. Destaque para a tromba (aquilo era um drad?!) do filhote de elefante e o vestido da matrona da taberna (Richard Biglia). Sim, a matrona: eu a via, mas não via. A voz e o corpo desmentiam a condição de matrona. A maquiagem estava estupenda, mas não encontrei o nome do criador da façanha. Ou será que foi criadora? Enfim, parabéns! - E não é que descobri: eles mesmos. -

Adorei a atuação minimalista de Maiquel Klein, que passou a maior parte do tempo sentado - mas de forma alguma passivo -, gesticulando uma faca. Não posso esquecer da Tatiana Vinhais, com seu juíz-banana meio Carmen Miranda, o qual segurou firme até o encerramento do engenhoso, agradável e curto "Elefantilt".