14/12/2010

Voz, Veneno, Vulto



Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas mágoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre remagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febirl agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas no sonho,
Almas que se abismaram no mistério.

Cruz e Souza


“Três atrizes, três histórias, vozes que ecoam na noite urbana. Nas ruas, nos bares, nos lares...fragilidades, fatalidades... “

Presenciei “Vozes Urbanas” sentado em meio às letras – pedaços de jornais: há assento mais provocativo do que repousar a bunda nas notícias? -, cercado pelas letras fixadas nas paredes com dizeres poeticamente despojados, e capturado pela voz de Deborah Finocchiaro através das letras suspirantes da canção de sua irmã, Lory F. -> http://www.buzinadogasometro.com.br/web/artista/Perfil.aspx?id=152

O Grupo dos Cinco, tendo iniciado suas atividades em 2003, possui uma característica que eu prezo muito: compartilhar conosco – público – seu processo criativo. A plateia-teste possibilita a percepção do que deve ser adicionado, removido, modificado ou mesmo lapidado, tanto para a direção, quanto para o elenco. A sala 505 da Usina do Gasômetro é o lugar ideal para uma leitura performática de teor corrosivo. Ao sair do elevador topamos com um quinto andar escuro, sempre com alguma manifestação artística sinistra, lado b total. É preciso caminhar um longo e estreito corredor para então adentrar a pequena sala, negra e de paredes irregulares.

“Vozes Urbanas” foi o primeiro trabalho do jornalista paulista – e dramaturgo – Sérgio Roveri, genialmente escrito em 2003. Nesta adaptação, para cada um dos três ambientes havia um spot de luz: a rua, o lar e o bar; a confissão, o segredo e a tara; a puta, a ex-mulher e o freguês; Deborah Finocchiaro, Sandra Alencar e Patrícia Soso. Pronto! A mesa está posta. E se o encarregado por essa função foi o vencedor do Prêmio Shell 2006 pela categoria de Autor por “Abre As Asas Sobre Nós”, Sérgio Roveri, está nas mãos de Beto Russo a lógica estética e condutora da montagem. Não de uma peça de teatro – infelizmente! – mas de uma ilustre leitura performática, ainda que eu não goste do termo “leitura” para este caso, já que o trabalho de atriz dessas três mulheres de possibilidades incalculáveis, em conjunto com a direção, rompem com a passividade da simples leitura textual. Aqui o texto é dado com veracidade voraz, de forma genuína. Não se lê, dramatiza-se. A construção da personagem existe, a técnica existe, a intenção existe. As únicas diferenças mais fortes entre uma leitura dramatizada e uma peça de teatro redondinha são a papelada nas mãos das atrizes – o roteiro – e o fato de seus olhos estarem voltados majoritariamente para ele. A plateia raramente ganha um olhar, é como se o feixe luminoso cegasse aquelas que estão em cena.

Ao escrever esta análise, levantei um questionamento: como se alcança a coerência e o brilho ao construir uma leitura performática na qual cada monólogo utiliza-se de um extremo lado do palco, incluindo o fato de que as personagens nunca interagem diretamente umas com as outras? A solução foi se formando aos poucos em minha mente, o caminho trilhado pelo autor e pelo diretor foi emergindo como a ponta de um iceberg: acredito que sejam as semelhanças incitadas pelos questionamentos existenciais erguidos pelas personagens através de suas vozes urbanas. O que é muito engraçado, porque também há diferenças agudas além dos ambientes, surgindo aí um interessante paradoxo. Mas não por isso a quebra da unidade.

A atriz Deborah F., de voz marcante, apresenta um desempenho muito satisfatório ao tomar para si os problemas da puta de meia arrastão, botas e vestido colado contra o corpo. Acaba sentindo-se humilhada por um cliente que resolve não lhe dirigir a palavra enquanto andam interminavelmente de carro, sem ao menos ligar o rádio. Ela chega a confessar o episódio que foi o divisor de águas em sua vida: a mijada que levou no rosto vinda de um cliente pervertido, que ainda a agrediu devido aos berros e socos da puta indignada. Chegou em casa completamente suja, não podendo lavar o principal alvo de degradação: a alma. Por isso o encaixe perfeito das canções de Lory: "cicatriz fica no corpo e é eterna como tatuagem". A partir daí ela aprendeu a dividir as coisas, a não admitir arranhões, a cobrar mais, a cuidar de seu filho.

“E a perseguição de alguém que está querendo tirar vantagem da nata do lixo do mijo do povo, do pouco que temos, do réu e do louco...”

“Tira de mim esse trem (pênis!), sanguessuga é covardia”


Sandra Alencar, indicada ao Prêmio Açorianos por “Adoração”, estava paralisada no centro do palco quando entrei. Lembrava uma louca de alta periculosidade, fugitiva de sanatório, com seus trajes brancos, lisos, e o fio de um telefone enrolado no corpo. Logo depois mostrou-se uma dona de casa inofensiva, desconfiadíssima com as freqüentes ligações de um estranho durante a madrugada. Sandra acredita nessa mulher “equilibrada” que afirma chamar a polícia e exige que o estranho pare de ligar, ao mesmo tempo em que jamais desliga o telefone, atraída pelo interesse do outro em conversar com ela. O ápice acontece quando o estranho diz um segredo íntimo que ela havia contado apenas para o seu ex-marido: ela adora não precisar sair da cama para soltar um belo par de peidos, agora que está solteira. A mulher surta, arrepia-se toda ao ouvir a palavra “peido”. É uma graça!

“Quando a garganta seca revela toda a angústia que há debaixo de todo esse prazer”

“É preciso explodir pra renovar”


Patrícia Soso, indicada ao Prêmio Açorianos por “Fora do Ar” -> http://percebeoteatro.blogspot.com/search?q=fora+do+ar e “Parasitas” -> http://percebeoteatro.blogspot.com/search?q=parasitas, utiliza-se de calças largas, tênis, camiseta sóbria e dicção propositalmente desleixada para entrar na pele do freguês bêbado. Passa a maior parte da leitura sentada em um lance de escadas ao lado de copinhos de plástico. E o bar já está pronto, teatro é um luxo! Na verdade o estabelecimento é uma espelunca, o próprio freguês é tomado por repulsa ao considerar vomitar no chão encardido. Ele possui uma linguagem mordaz com o garçom, dono do bar, a ponto de meter um revólver em sua boca. Após os ânimos se acalmarem, o freguês conta a maior de suas taras para o garçom: trepar com uma dentista no consultório. Considera este um fetiche único, nunca realizado. Orgulha-se. O garçom falha ao conseguir a posse do revólver, achando que o outro teria medo da morte. Decadentes raramente possuem esse tipo de medo, e outra: nem mesmo carregada a arma estava! Patrícia nunca me decepcionou em cena e não foi dessa vez, de corpo inteiro, precisa, orgânica. As histórias do freguês, hilárias, foram corretamente reproduzidas pela atriz.

Sérgio Roveri faz literatura do calibre de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, comparações inevitáveis. Não há como permanecer indiferente às vozes urbanas - sejam essas gemidos, sussurros ou gritos -, pois elas penetram mente e coração. Tal é a força da cópula literária de mãos dadas ao teatro e à performance.

“Não é só fumaça e ainda há água pra beber”

Ficha Técnica
Elenco: Deborah Finocchiaro, e Patrícia Soso e Sandra Alencar
Direção / Iluminação: Beto Russo
Trilha Sonora Executada Ao Vivo: Deborah Finocchiaro
Compositora: Lory Finocchiaro

Sites Relacionados

http://www.grupodoscinco.com/
http://www.deborahfinocchiaro.com/

29/09/2010

O Vigésimo e Último Dia de Encanto



Até mesmo o prefeito, José Fortunati, compareceu à entrega do 5° Prêmio Braskem Em Cena. A participação já havia sido pré-estabelecida, porém não surpreenderia se não houvesse sido, pois a quantidade de pessoas que entraram no Theatro São Pedro era inacreditável. Quando, enfim, todos estavam acomodados, visualizamos em uma tela de fundo a projeção de um vídeo que apresentava as peças locais concorrentes às cinco premiações. Contamos com a ambientação de uma música animadíssima, que remetia ao circo e à Fellini. Os concorrentes foram:

- Dentrofora (teatro)
- Dar Carne à Memória (dança)
- Elefantilt (teatro)
- Milkshakespeare (teatro)
- My House (dança)
- O Avarento (teatro)
- Homem que Não Vive da Glória do Passado (teatro)
- O Gordo e o Magro Vão para o Céu (teatro)
- Play-Beckett (dança e teatro)
- Solos Trágicos (teatro)

Após cada mini demonstração das peças, a diretora ou o diretor comentava a respeito do Troféu Braskem e do financiamento dado à realização do Porto Alegre Em Cena pela empresa. O que se viu foi uma idolatria efusiva. Imagem esta, confirmada com as diversas referências à empresa e com os holofotes que infestaram o teto do teatro: Braskem, Braskem, Braskem. O fato de uma empresa petroquímica de capital privado investir largamente em cultura é simplesmente bárbaro, entretanto a postura de subordinado/dependente não deve cair no exagero.

Para quebrar com o clima solene da cerimônia, Luciano Alabarse conduziu a entrega de prêmios com seu típico humor elegante: admitiu não saber como funciona uma média harmônica (por mais que seu amigo Roger Lerina tente explicar), comentou sobre a gafe que lhe foi enviada de São Paulo (o Porto Alegre em Ação) e nem quis saber como é dada a formação do polietileno, ao trocar palavras com João Rui Dorneles Freire (diretor de marketing da Braskem), o qual entregou a primeira premiação da noite: Marco Rodrigues ganhou o prêmio de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular por seu espetáculo de dança My House. Segundo o Júri Oficial, estes foram os vencedores:

Melhor Atriz / Bailarina – Fernanda Petit, de Solos Trágicos e O Avarento
Melhor Ator / Bailarino – Eduardo Severino, de Dar Carne à Memória
Melhor Diretor / Coreógrafo – Carlos Ramiro, de Dentrofora
Melhor Espetáculo – Dentrofora

O Melhor Espetáculo ganha, além do troféu, 20 mil reais. O restante, ganha três mil reais. Vale salientar que um festival com 70 atrações apresentadas em 20 dias parece ser coisa de louco, mas a eficiente classe artística deu conta da façanha! O 17º Porto Alegre em Cena foi realizado pela Prefeitura, com a parceria das empresas Petrobrás, Braskem e NET, mais a Caixa, a Multiplan – Barra Shopping Sul e a Cia Zaffari.

Para finalizar, é imprescindível dizer que a premiação foi toda fragmentada, visando encantar o público ansioso com o glamour decadente de Cabarecht, o espetáculo musical de Humberto Vieira. Cida Moreira penetrou o breu em um palco composto por duas mesinhas e um piano de cauda negro, cintilante. Neste sentou e de lá não saiu mais. Trajava um vestido enorme, com uma parte interna em formas geométricas esverdeadas que era um charme. Não só grande mulher, como também grande diretora musical, Cida toca com estilo. Em seguida, entrou Antônio Carlos Brunet, figura que se destacava pela blusa vermelha e pela lindíssima voz, provavelmente de tenor. Inclusive, as vozes masculinas me chamaram mais atenção do que as femininas nesta montagem soturna que revisita os antigos cabarés alemães.



Aqui, explora-se a obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, é uma reunião de intelectuais a fim de mostrar o seu talento através das audaciosas músicas do compositor Kurt Weill, criadas com o apoio de Brecht. Zé Adão Barbosa entrou com o corpo engajado e refinados trejeitos, compartilhando conosco e com seus parceiros a potencialidade de sua voz de declamador de poesias, contador de histórias. A junção de timbres se deu por completa quando a esvoaçante Sandra Dani chegou ao microfone com pérolas e a energia de uma jovem mulher. Jovem mulher sensual! É a liberdade existente apenas no teatro. Logo mais ela cantou Surabaya Johnny mergulhada em desilusão amorosa, priorizando a interpretação ao invés da melodia, algo que se repetiu até o fim de Cabarecht.

Os homens nos presentearam com uma empolgante versão de A Balada da Dependência Sexual, ao passo que Cida Moreira deu o melhor de si em uma versão extremamente espirituosa de Teresinha. A temática da peça me fez imediatamente reviver os momentos de Quanto Vale ou é Por Quilo?, musical do qual fiz parte no início desse ano. Ernani Poeta conduziu uma linha narrativa voltada ao tráfico de pessoas, com as personagens de Brecht e as músicas de Weill. Esse foi apenas mais um atrativo para assistir a peça em questão.

A maquiagem utilizada no rosto dos atores e atrizes é carregada: uma base de pancake branco com traços negros ressalta os traços e dá a eles um aspecto vampiresco. Também presenciamos Mack The Knife, com a famosa balada revisitada por Chico Buarque em O Malandro. A despedida, não só de Cabarecht como do 17° Porto Alegre Em Cena, foi consumada com o embriagante país dos nossos desejos: Youkali. Pena que a versão francesa cantada pelo quarteto, ainda que bela, nos prive da tradução.

Pois aqui coloco alguns trechos dela:

[...]
Youkali, é o país dos nossos desejos
Youkali é a felicidade, é o prazer...
Youkali é a terra onde esquecemos os nossos cuidados...
é, na nossa noite, como o alvorecer,
a estrela que seguimos é Youkali!

Youkali é o respeito pelos votos trocados,
Youkali é o país dos amores partilhados,
é a esperança nos corações humanos,
a libertação, que amanhã esperamos!

Youkali, é o país dos nossos desejos
Youkali é a felicidade, é o prazer...
Mas é um sonho, uma loucura,
pois Youkali, não existe nenhuma!
[...]




Ficha Técnica
Direção e roteiro: Humberto Vieira
Direção musical: Cida Moreira
Elenco: Cida Moreira, Sandra Dani, Antônio Carlos Brunet e Zé Adão Barbosa Iluminação: Claudia De Bem
Programação visual: Humberto Vieira
Duração: 1h10min

Ih, Teatro Contemporâneo



“Vieram aqui fazer o quê?”, pergunta a personagem de Emílio de Mello em direção à vasta plateia do Theatro São Pedro. A primeira reação foi a gargalhada e a certeza de que In On It seria um grande espetáculo. Mais tarde acabaria descobrindo que o objetivo desse espetáculo é, justamente, não ser um espetáculo. E sim, ser uma peça. Uma simples peça de teatro. Sem pretensão estética ou deslumbramento. O teatro, em si, almeja causar impacto emocional e identificação por parte da plateia. A montagem carioca In On It surpreende ao não querer surpreender.

O texto do canadense Daniel MacIvor formou uma aliança com a direção de Enrique Diaz, sob um olhar satírico. Uma peça que não leva a sério nem a si mesma, pode ser arriscada. Mas não é o caso, aqui a sátira se encaixa muito bem. Rimos de nós mesmos e da porcaria do mundo em que vivemos/construímos. A ausência de cenário passa praticamente despercebida, pois todos os outros aspectos promovem um envolvimento íntimo com o espectador: o texto ousadíssimo, a direção precisa e as atuações impecavelmente naturais. Tal afinco resultou em dois Prêmios Shell (direção e ator, Fernando Eiras). Sobre o figurino, não consegui compreender seu significado. Por que diabos a dupla usava roupa social? Tirando o All Star de Emílio de Mello, ambos estavam idênticos. O que está claro, é que aí a sátira também encontra moradia. Existem algumas passagens muito curiosas, onde os atores estão em planos diferentes (um não vê o rosto do outro), mas ainda assim contracenam, dialogam. É como se um pseudo monólogo nos fosse apresentado, e essa atuação individual é muito enriquecedora para a pesquisa cênica e para a visualização de quem está sentado no teatro.



O diálogo entre um escritor (Fernando Eiras) e um ator (Emílio de Mello) é apresentado de forma original e inovadora. As personagens não são, de forma nenhuma, fixas: ao mesmo tempo em que vemos um ator questionando seu roteirista a respeito da forma como deve interpretar, também visualizamos um paciente e seu médico, filho e pai, homem e mulher, casal de namorados (homens) em crise. Então não se trata de um laço que une dois homens. Mas de um emaranhado de laços que vão, um a um, sendo desatados pela indiferença, traição, falta de comunicação e conflito de ideias. Porém, o nó desfeito pode renascer ainda mais forte. Basta que a comunicação e os sentimentos sejam claros ou esclarecidos. Nada disso nos é apresentado de forma linear, a troca de luz avisa: uma nova personagem será invocada, uma nova relação será estabelecida. As conseqüências dessa estrutura narrativa somadas ao despojamento estético resultam em uma peça fragmentada, cheia de histórias paralelas que se fundem em uma só: o romance vivido entre Terry e Lloyd.

O ator acusa o roteirista de ter problemas com as mulheres, mas este nega veemente com gestos e voz femininos, provocando forte riso na platéia. Reafirma sua acusação ao dizer que o roteirista cria sempre mulheres bêbadas e com personalidades rasas em sua linha dramatúrgica, além de citar uma cena específica, na qual a mulher joga o casaco do marido no chão, enraivecida. A contradição humana é exposta quando a dupla (ator e roteirista) briga por um casaco, embate mais do que superficial, revisitando a própria cena antes condenada pelo ator. Como diria Fernando Pessoa: amar é aceitar a condição de ridículo.

In On It explora o não-dito, a intenção, o negativo fotográfico e, em suma: está Por Dentro. A desconstrução da linguagem teatral e a metalinguagem trabalham muito bem com o formato despretensioso, provando que pequenas produções (dois atores, uma cadeira e um casaco) podem dar certo. Que o grande teatro se faz com criatividade e talento, prescindindo de parafernálias.



Ficha Técnica
Texto: Daniel MacIvor
Tradução: Daniele Ávila
Direção: Enrique Diaz
Assistente de direção: Pedro Freire
Direção de cena: Marcos Lesqueves
Coreografia: Mabel Tude
Consultoria de movimento: Marcia Rubin
Técnica Alexander: Valéria Campos
Elenco: Emilio de Mello e Fernando Eiras
Figurino: Luciana Cardoso
Cenário: Domingos de Alcântara
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha sonora: Lucas Marcier
Produção: Enrique Diaz
Duração: 1h20min

28/09/2010

Onde Houver Carne



Por: Andrei Moura e Guilherme Nervo

Enclausurados em um quarto, três personagens participam de uma relação simbiótica: um depende do outro, um parasita o outro a fim de continuar em pé. Neusa Suely (Paula Cohen) é a prostituta apaixonada por Vado (Gustavo Machado), seu cafetão. Este, em contrapartida, precisa do dinheiro da prostituta. A entrada de Veludo (Gero Camilo), o faxineiro do bordel, completa esse triângulo de dependência quando ele rouba o “casal”, condenando-se a devolver a quantia, seja lá de que forma. A tríade atravessada por paixão, desejo reprimido e violência forma a matéria-prima de Navalha na Carne.

Adentramos uma Sala Álvaro Moreyra pesada, carregada de energia lunar. Sim, porque aqui as personagens são aliadas da noite. Ela lhes providencia dinheiro, alimento e prazer. O pôr-do-sol é a véspera das criaturas noturnas de Plínio Marcos. Debaixo da noite feroz não há espaço para vergonha ou arrependimento: é o meu desejo e pronto, quem não gostar eu passo por cima. Navalha na Carne expõe o estado deplorável em que a mulher e o homem podem chegar ao optarem por um modo de vida no qual a indiferença e o egoísmo são as tônicas. Assim, a vida transforma-se em uma espécie de mutilação diária que deixa mente e emoção com hemorragias persistentes, pois esse é o tipo de ser que não busca estancar o sangue até se perceber encharcado, até a navalha perder o fio. Inclusive, esse modo de vida leva Neusa Suely a questionar se ela e seus companheiros são gente, se merecem essa qualificação.

Um homem de energia efusiva, vestindo trapos e com fones de ouvido, deslizava por todo o palco arena, guiado por seus patins, soltando sua voz potente e peculiar em uma canção romântica. Mais tarde descobriria que ele é a raiz do principal conflito estabelecido em cena: um roubo. Trata-se de Veludo, o faxineiro homossexual que interage com a plateia durante a maior parte da encenação paulista. Gero Camilo, ator escalado para o papel, construiu uma personagem exemplar, dá um show de interpretação. Transborda a mais pura feminilidade e, principalmente, é quem faz o espetáculo respirar com seu apelo infindável à graça, ao riso. Por isso, me senti sufocado quando ele saía de cena por longos períodos. Claustrofobia esta, talvez propositalmente intencionada por Pedro Granato, o diretor. Veludo é dono de respostas e trejeitos implacáveis, utilizando-se de termos em inglês e de muita esperteza para conquistar o público. Tal como seu nome, é escorregadio e pomposo.



O cenário realista colabora em muito na criação da atmosfera underground. A princípio, o coração vermelho de luz néon é o que mais focaliza a atenção, remetendo diretamente a um velho bordel. A cama redonda ocupa bastante espaço, e com razão, visto que é também ringue, campo de guerra. É ali que presenciamos a linha narrativa inquieta de Plínio Marcos: o desgaste emocional, a ofensa, a declaração de amor camuflada, o cansaço, a troca de injúrias, a reflexão, a vida louca. Ninguém pisa naquela cama sem a marca de uma navalha na carne. A porta do apartamento é outra engenhosidade cênica: é o esboço de uma porta de madeira negra, contendo apenas seu formato e uma fechadura. As quatro paredes escolhidas por Pedro Granato foram intensas luzes fluorescentes, que não apenas iluminam, mas cegam. Por isso a constante selvageria. Tanto a porta quanto as “paredes” mais revelam do que guardam. Se o coração referido no início do parágrafo está partido, é fácil de saber a quem pertence: à prostituta Neusa Suely.

Neusa Suely é um ser duplo, assim como seu nome, que é composto. Ao mesmo tempo em que sai às ruas se prostituindo, ao chegar em casa deseja ser tratada como uma mulher comum: ser bem recebida pelo homem. Mesmo que ela não explicite o amor que sente por Vado, esse sentimento é perceptível. Já para o cafetão, ela representa apenas uma fonte de renda. Mostrando-se muito incomodado com o envelhecimento de Neusa, chamada de galinha velha por Veludo. A relação estabelecida é masoquista, tanto o agressor quanto a agredida estão ligados pela necessidade de dar e receber violência. A luz fluorescente ilumina a alma das personagens: enquanto Vado insiste em humilhar e agredir Neusa, ela posta-se diante o foco de luz com o rosto cabisbaixo, derretendo; a alma torcida, maltratada. O cafetão, como o próprio texto explora, é malVado. Ainda que macho ou ser dominante, no embate com o faxineiro (com conotações homoeróticas) vemos que sua única arma efetiva é a violência física. Sua própria ostentada masculinidade é ameaçada pelo resguardado desejo por Veludo. Internamente, é o mais fraco dos três, e o mais amoral.

Cabe ainda dizer que a encenação de Pedro Granato distribuiu em porções equivalentes o foco narrativo. Cada personagem tem o seu momento e cada ator tem o seu brilho, ainda que a participação de Gero cause maior repercussão e simpatia entre o público, especialmente pelo humor. Gustavo Machado tem em mãos um homem repulsivo, trazendo sua antipatia com veracidade. Paula Cohen constrói Neusa com coerência e entrega, garantindo empatia, embora tenha sido ofuscada em alguns momentos, justamente por representar uma personagem cansada dos revides da vida. O espetáculo que desnuda personagens marginalizados, aparentemente distantes de nós, destrói essa distância, mostrando que onde houver carne, haverá sofrimento.



Ficha Técnica
Texto: Plínio Marcos
Direção: Pedro Granato
Elenco: Gero Camilo, Gustavo Machado e Paula Cohen
Figurinos: Tatiana Thomé
Espaço cênico: Alessandra Domingues e Pedro Granato
Iluminação: Alessandra Domingues
Direção de produção: Helena Weyne
Produção: Macaúba Produções Artísticas
Duração: 1h10min

Da Banalização



A arte performática pode conjugar teatro, música, vídeo e poesia. No caso de Sissy! temos uma performance não-verbal conduzida pelo trabalho essencialmente corporal. Já que a voz é mascarada e o corpo desnudado, a sustentação é dada através da forma, da escrita cênico-corporal. Ao ler a sinopse da performance francesa, é difícil não querer assistir-lhe, não ficar empolgado com o tema proposto por Nando Messias, o protagonista, em seu doutorado prático na Central School of Speech and Drama: o conceito de “sissiografia” do corpo. O título é um pejorativo inglês para o homossexual afeminado, equivalendo a “bicha”, “veado”, “marica” ou mesmo “queer”. Todos conhecem a figura masculina detentora de formas femininas ao manifestar-se: do modo de caminhar ao modo de pensar. Inclusive, os meios de comunicação massivos, como a televisão, não hesitam em explorar a já muito desgastada e banalizada imagem do homossexual afetado, mesquinho e arrogante.

Sissy! consegue romper tal barreira? Alcançar o que vai além da superfície? Não, Sissy! não alça vôo em momento algum. Se existe sucesso no processo de escrita do conceito “sissy” no corpo do performer/dançarino Nando Messias, este sucesso é feio, é grotesco e causa repulsa. Nando representa o lado ultra-feminino, o transexual fraco e marginalizado: pernas lisas e longas, salto alto, batom, comprido cabelo negro e corpo magérrimo. Relaciona-se com Biño Sauitzvy, também diretor, que representa o lado masculino, o boxeador forte e opressor: porte musculoso, regata e tênis barulhento.

Concluo, então, que o conflito entre os sexos existe. E aí? Parece-me impossível evocar reflexão ou admiração por um trabalho que se agarra em estereótipos e falha na tentativa de causar riso ou emoção. Não interroga nem desconstrói a naturalização dos corpos em papeis e práticas sociais cristalizadas, separando os sexos em blocos distintos.

Poucos foram os momentos em que senti algum lirismo, como a longa coreografia inicial, permeada por uma junção de lábios eterna. Diante da nuvem de apelação, meus olhos embaçados não foram capazes de visualizar a arte sensorial, o indivíduo fragmentado, híbrido. É possível enxergar técnica e dedicação, por exemplo, nas passagens em que havia sobreposição de peso entre os corpos, as quais clamavam por entrega e confiança recíproca. Ainda assim, faltou a Sissy! vida e profundidade.



Ficha Técnica
Direção: Biño Sauitzvy
Elenco: Biño Sauitzvy e Nando Messias
Figurino: Collectif des Yeux
Iluminação: Claudia de Bem
Produção: Claudia de Bem e Collectif des Yeux
Duração: 1h

Despedida Absoluta



O enterro (ou cremação) simboliza a despedida absoluta. Enquanto o sangue correr em mim, não mais terei contato - ao menos terreno - com aquele que é protagonista de tal ritual fúnebre. O dia em que a figura masculina - o pai - falece, é o dia em que o filho não espera, a gente nunca espera. Mesmo quando diz "- Eu esperava". É mentira. A morte é sorrateira, e se às vezes repentina, na maioria das vezes possui a mais paciente forma de agir. Minha experiência com a morte é a de morte súbita, irônica e amarga. Comparecer à despedida absoluta é admitir a perda, visualizar a serenidade de um corpo desabitado e frio que recebe uma única fonte de calor: as lágrimas.

O mérito do dramaturgo paulista Dib Carneiro Neto, em “Por Tu Padre”, foi o de condensar uma situação trágica com um diálogo leve, resultando em um texto muito bem escrito. Diálogo leve, mas não raso, apaixonadamente interpretado por Adrián Navarro e Federico Luppi. A diferença de idade entre os argentinos não é motivo para uma possível discrepância cênica. Em cada deixa ou abraço apertado, longo, observava cada vez mais nítida a forte ligação entre os dois.

O delgado Adrián Navarro vive o luto pela morte do pai na missa de sétimo dia, ao passo que resolve acertar as contas com o antigo amante de sua mãe que, possivelmente, é seu pai biológico. De voz rouca (ainda que forte e agradável), personalidade debochada e conservadora, Navarro me persuadiu. Concedeu-me chance para embarcar de corpo e alma em sua história. Sim, tive que relevar a falta de legendas que traduzisse o ardiloso espanhol. Federico Luppi, por sua vez, deu conta de seus três papéis: o amante da mãe, o próprio defunto e um padre; entretanto não chegou a uma divisão de personagens muito clara. Seu canhão é o carisma.

Amante e filho fazem inúmeras referências à mulher do falecido, que está e não está em cena. A mulher é a santa incrustada no impactante vitral gótico da Igreja que se estabelece como um elemento exuberante. A opulência do cenário de pedra, composto por pilares, opõe-se à ausência de trilha sonora. Pensando bem, qual seria a trilha adequada para um ambiente sacro e grandiloquente? A ostentação do poder dispensa auxílio. O vitral, simbólico, não está lá por acaso, a mãe é frequentemente santificada pelo discurso do filho, que fica embaraçado quando o assunto toca na sexualidade materna e no poder de traição feminino. Como se a mulher não fizesse sexo ou traísse. Identificam-se aí vestígios da cultura machista dos países latino-americanos.

A lamúria e a dúvida que repousa sobre sua ascendência, conduzem o filho a fervorosas discussões com o personagem de Federico Luppi, as quais progridem, tornando-se também confissões e estreitamento da relação. Orgulha-me presenciar um trabalho que não necessita do amparo de bengalas para caminhar (ainda que, perdão, o personagem de Luppi precise), tendo como principal base a arte do ator. Ou a arte de ator, segundo Luís Otávio Burnier.



Ficha Técnica
Texto: Dib Carneiro Neto
Direção: Miguel Cavia
Elenco: Federico Luppi e Adrián Navarro
Figurino: Marcelo Pont
Cenário: Marcelo Pont
Iluminação: Gabriel Cavia
Produção executiva: Giuliana Bacchi e Maria Fernanda Sciuto
Produção: Cristian Cristofani, Ariel Diwan, Carlos Bacchi
Duração: 1h10min

A Beleza Salvará o Mundo!



Por: Andrei Moura e Guilherme Nervo

Em uma época dominada por rigorosos padrões estéticos, busca incessante pela juventude eterna, cirurgias plásticas em profusão – enfim, o culto ao corpo perfeito em detrimento do desenvolvimento espiritual -, a frase (que dá título a esta crítica) de Fiodór Dostoievski poderia ser incompreendida, ou mal compreendida. Na verdade, após assistirmos à montagem do lituano Eimuntas Nekrosius, O Idiota, baseada no romance homônimo do escritor russo, estendemos o seu sentido a outras direções. De fato, as cinco horas de duração do espetáculo, que à primeira vista poderiam apreender o espectador, são dissipadas diante da – belíssima – apresentação assinada por um dos mais renomados diretores bálticos.

A trama gira em torno da ingenuidade de um jovem de 26 anos, o Príncipe Míchkin ou Lev Nikoláevitch, o epiléptico (idiota), que dá título ao romance. A fim de receber sua herança, Lev retorna da Suíça, onde tratava sua enfermidade, chegando em sua terra natal: São Petersburgo, onde morava sua família, agora falecida. Devido a sua sinceridade e honestidade, o príncipe é envolvido sistematicamente em redes de intrigas, nas quais o seu caráter humanitário termina por "condená-lo". Tal como Dom Quixote, de Cervantes, (que, aliás, serviu de inspiração para Dostoievski na composição do personagem ao lado de Jesus Cristo), Míchkin é um sujeito autêntico em uma sociedade de valores inautênticos. Por isso, o idiota fala com convicção e complexidade, diferente da simplicidade alienada das famílias que, por sua vez, representam a sociedade.

A peça, dividida em quatro atos separados por três intervalos de 15 minutos, é uma lição de como modernizar sem descaracterizar. Toda a atmosfera cinzenta e soturna do realista russo, que produziu o texto em meio a severas dívidas de jogo e crises de epilepsia, estão presentes na montagem. Desde o figurino com pequena variação cromática, no qual a cor preta é dominante; a sobriedade da luz; até o cenário econômico/funcional. Destaco a porta de fundo, suspensa por cordas e desprovida de paredes.

A trilha sonora pontua todo o percurso das ações iniciais, revelando-se excessiva, principalmente no primeiro ato, o mais longo. A sensação causada é a de monotonia, de mesmo tom. Em contrapartida, a peça alavanca por intermédio de dois momentos: a chegada das mulheres em cena (elas surgem em espirais libidinosas, são a pulsão sexual personificada) e, mais para o final do primeiro ato, o estrondo causado por um tiro. A plateia, antes milho, é agora pipoca. O inesperado capta a atenção conquistando-a. O diretor não precisa recorrer ao apelo fácil para seduzir, sua dramaturgia e encenação bastam. Objetos e (moviment)ações são ressignificados, adquirindo outras conotações. Adentramos a uma construção cênica metafórica que emana um raio de sentidos variados, partindo de elementos simbólicos e significativos. Uma comunicação mais intuitiva e sensorial ocasiona uma jornada particular dentro de si. É o que acontece, por exemplo, na cena magistral (de grande impacto emocional e visual), na qual um espelho suspenso por uma corda é girado pelas mãos do idiota em torno de uma mulher aos prantos, Nastásia Filíppovna. Então, fica registrada nossa leitura: a passagem pode ser compreendida como a vaidade de Filíppovna entrando em crise, a beleza voltando-se contra o belo. A fumaça é outro elemento carregado de simbologia e plasticidade que, muito presente, materializa o caráter pouco definido das personagens, a nebulosidade.



Em termos de brumas e borrada nitidez, a presença feminina (mais complexa e multifacetada) invade o palco se configurando como um elemento gerador de conflito entre os homens. Ao final do primeiro ato, estamos certos de que Nastásia será o pivô da história, dada a quantidade de pretendentes e alvoroço causado pelo seu poder de sedução. Somente no segundo ato descobrimos a relevância de uma personagem apagada/desmaiada, a raquítica Aglaya. A mudança de foco surpreende, pois Aglaya é reprimida, possui gestos trêmulos e uma estrutura emocional fragilizada. Facilmente deixa-se abater, como uma árvore de fibras maleáveis que se contorce e perde as folhas com o sopro dos ventos. Ao conhecer o príncipe Míchkin, a mulher sem abundâncias físicas e com sentimento de inferioridade, agora tem a chance de dominar ao invés de ser dominada. A paz de espírito, a identificação e o reconhecimento, são encontradas no Idiota. O que me remete ao diálogo (apaixonado) travado entre os dois, sentados em berços de ferro, como se postos na condição de crianças, de idiotas. A ruiva com detalhes verdes em sua roupa (Aglaya) é dona de uma atuação brilhante, comparável a uma semi-morta flor que, ao ser irrigada, desabrocha esplêndida.

A literatura de Dostoievski, ao mergulhar, com perspicácia inovadora, no lado sombrio dos indivíduos e das relações, transformou-se em fonte de inspiração para muitos escritores, sendo concebida como uma das mais potentes referências para a literatura ocidental. O teatro de Nekrosius,quando opta por uma encenação longa, em uma época como a nossa, demarcada pela utilização frenética do tempo, propõe uma importante reflexão a respeito do própria função do teatro: “Teatro é síntese, mas não brevidade. É um antídoto contra a pressa insensata dos nossos tempos”. Por isso insistimos: o teatro lhe salvará do mundo!



Ficha Técnica
De: Fiódor Dostoievski
Direção: Eimuntas Nekrosius
Elenco: Daumantas Ciunis, Salvijus Trepulis, Elzbieta Latenaite, Diana Gancevskaite, Margarita Ziemelyte, Vidas Petkevicius, Migle Polikeviciute, Vaidas Vilius, Vytautas Rumsas, Ausra Pukelyte, Vytautas Rumsas Jr., Neringa Bulotaite e Tauras Cizas Cenografia: Marius Nekrosius
Figurinos: Nadezda Gultiajeva
Desenho de luz: Dziugas Vakrinas
Música original: Faustas Latenas
Desenho de som: Arvydas Duksta
Produção: Meno Fortas
Duração: 5h20min / Legendas em português

Através do Riso



Os homens constroem pontes, jurando que está nascendo um rio, diz Ingrid Pelicori enquanto massageia o rosto de Claudia Tomás. São as atrizes argentinas de Antígonas, sem dúvida a mais profunda e ao mesmo tempo espontânea conquista cênica a que assisti até agora. E olha que ainda estamos na segunda semana do Festival! O texto de Alberto Muñoz possui quatro momentos/atos/narrativas, cada qual com o seu ambiente: um salão de beleza, uma aula de introdução à técnica vocal, uma viagem de balsa e uma consulta de fisioterapia. Para mesclar as narrativas, a diretora Leonor Manso optou por uma escura luz violeta e uma trilha sonora marcada pela tensão. Já no campo da direção geral, a principal qualidade que salta aos olhos é a paz desperta. Ela aproveita os sessenta minutos do espetáculo como ninguém, sem deixar espaço para afobação ou estrelismo. São duas mulheres imbuídas pelo próprio trabalho, sem necessidade de disputar a atenção do público. Fazem uso apenas da atuação encarnada: suas reações são plenamente críveis e bem lapidadas. É como desfrutar de uma comida com a medida exata de tempero.

A tranquilidade da direção repercute em todos os outros aspectos da montagem: não há muitas trocas de iluminação; o figurino é sóbrio, composto por vestidos lisos em um tom prateado; o cenário (que em muito me agrada) é versátil e econômico, formado por um divã de madeira (utilizado de diferentes formas em cada narrativa) e uma plantinha de vaso; para finalizar, praticamente não há música de fundo. Tudo isso a fim de que o foco, a sustentação de Antigonas, seja a habilidade representativa.

A frase com a qual iniciei minha análise (dita pela personagem de Ingrid Pelicori) representa o desejo masculino de disputar com os deuses o poder da criação. Bip! Encontra-se aí uma possível ligação com a peça do grego Sófocles, na qual Creonte proíbe que enterrem o corpo de Polinices, o irmão de Antígona. Entretanto, ela não hesita ao desobedecê-lo, enterrando o irmão. Seu objetivo era cumprir os rituais fúnebres, para que a alma de Polinices não vagasse eternamente. Esse rito transcende qualquer proibição humana, é a lei divina versus a lei humana. Ao sair do teatro, o título Antígonas estava suspenso (obscuro) no ar, somente agora, digerindo a – reflexiva! – encenação argentina, pude agarrar o título no ar, ou pelo menos algumas letras. Estou certo de que é o mito que está sob a ótica da montagem, não o contrário.

A primeira narrativa aborda a preocupação neurótica feminina em busca da beleza, motivada pela opressão masculina. A ornamentação estética é uma forma de equalizar-se aos homens. É necessário sofrer em prol da beleza, entretanto, uma ajuda a outra, o que visualizamos no antológico enquadramento à La Pietá. E se a mulher almeja ser homem, este almeja ser deus. Por isso a imagem de Cristo é equiparada à figura feminina, e Deus, à figura masculina. Quem diz isso é a personagem de Ingrid, ao passo que mexe o creme em um pote de metal, causando o mesmo som do badalar dos sinos de uma igreja. Então me veio uma comparação improvável: tanto a igreja quanto o teatro têm o poder de reunião.

A segunda narrativa é muito divertida – de fato todo o espetáculo é permeado pelo riso e pela descontração -, explora a relação entre uma arrogante professora de canto e sua aluna, Julia. Enquanto a professora obcecada (Claudia Tomás) fala de técnica e da primazia da música, Julia (Ingrid Pelicori) quer apenas o mágico. É a razão versus a emoção, a rigidez versus a liberdade. A seguir, nos é apresentada a terceira narrativa: conduzidas por uma balsa (engenhosamente adaptada ao divã), elas trocam palavras de rancor, desnudando sua relação; aqui, usam vestes gregas para demonstrar a atemporalidade dos conflitos humanos, que pode muito bem girar em torno da inveja de uma pelas tetas da outra! A quarta e última narrativa expõe a consulta entre uma fisioterapeuta (Ingrid P.) e sua paciente (Claudia T.) imobilizada. Trata-se de um belíssimo exemplo da administração adequada de múltiplas facetas, conseguindo passar de uma personagem para a outra sem deixar resquícios. Enquanto a fisioterapeuta discursa a respeito do movimento mentalizado das pernas, a paciente regurgita bulas de remédio – los prospectos –, afirmando que o mundo está fora do alcance das crianças. A fisioterapeuta modifica essa frase afirmando que o mundo está fora do alcance de todos! Pronto, agora ela também é paciente.

Enquanto os gremistas iam para o estádio Olímpico, eu, o cara das aspirações artísticas, ia ao Teatro Bruno Kiefer. Hoje, ser homem exige menos do que antes, ainda que existam padrões comportamentais muito presentes em nosso sexo: ser macho é ser firme e intolerante, é não titubear. A palavra "homem" carrega em seu lombo as palavras "força" e “auto-afirmação”, sendo talvez mais pesada – culturalmente – do que a palavra “mulher”, que está mais livre de amarras. Às mulheres, cabe a flexibilidade, a tolerância, a vaidade. Ser fêmea é provocar alvoroço, é aproveitar-se da imagem de fragilidade para tornar-se vítima.

Para mim, os sexos esperam demais uns dos outros. Mais do que isso, estão envenenados por imposições construídas de forma cultural. O futebol é tido como um esporte viril por conjugar elementos como firmeza, rapidez, força, suor e objetividade. Já o teatro, é tido como uma manifestação mais subjetiva. São necessárias percepção e sensibilidade para admirá-lo ou mesmo respeitá-lo. Agora vem a pergunta: por que as identidades do masculino e do feminino são tão divididas em nossa sociedade? Cada ser humano é um complexo de elementos femininos e masculinos que, ao invés de entrarem em conflito, deveriam ser integrados e estimulados, não dependendo do sexo para isso, e sim da afinidade individual. É uma busca pela fluidez, tal como o rio, que não divide suas águas ao a correr pela terra. A divisão de papéis sociais a fim de estruturar famílias e relações saudáveis, proporciona não mais do que efeitos colaterais: desgasta e desestrutura. As mulheres de Antígonas, através do riso e da excelência artística, vieram nos lembrar de que esse sistema falido perdura.



Ficha Técnica
Texto: Alberto Muñoz
Direção: Leonor Manso
Elenco: Ingrid Pelicori e Claudia Tomás
Figurino: Elsa Keller Amanda Carvalho
Cenário: Leonor Manso
Iluminação e Trilha sonora: Pedro Zambrelli
Música: Alberto Muñoz e Diego Vila
Canção original: “Bye Bye Maciel”
Piano: Diego Vila
Produção: Carolina Cacciabue
Realização: A & B Realizaciones Escenográficas
Duração: 1h

A Nau Frágil



Por Andrei Moura

As mulheres e as crianças são as primeiras que /desistem de afundar navios. Essas duas linhas que compõem o poema Cartilha da Cura - curtas pela extensão, intensas pelos significados - foram o meu primeiro contato com o lirismo intempestivo, por vezes nebuloso, mas sempre vivo, feroz e voraz de Ana Cristina César. Interessado em saber mais sobre a mulher que, com mínimos recursos, tangia a mais densa profundidade, desvendando a tensão por detrás das convenientes máscaras que delimitam a selvageria da vida em quadros aceitáveis; procurei relatos biográficos e descobri que Ana Cristina havia sido uma mulher misteriosa, bela e erudita, que cometera suicídio aos 31 anos de idade no início da década de 1980. É claro que a personalidade literária e pessoal da escritora não se restringem a estes rótulos rasos, mas estes oferecem algumas pistas, indícios, rastros da trajetória de um dos expoentes da chamada geração mimeógrafo (ou poesia marginal).

O tema do suícidio sempre exerceu sobre mim um estranho fascínio: por ser um dos tabus da nossa sociedade, por suscitar questionamentos religiosos, ideológicos e, mais que isso, ser considerado o ato de covardia mais corajoso que um ser humano é capaz de comenter. A finitude da existência e o além-morte são zonas desconhecidas, apenas suspeitadas, que só podem ser pisadas ou experimentadas uma única vez, em um só golpe. Talvez por isso, a poesia de Ana Cristina César tenha fundidido o lírico ao proibido, transformado palavras em viva carne, extravazado fronteiras, inclusive tornando indissociáveis (me desculpem os estruturalistas russos) o biográfico do ficcional.

É desta mistura entre arte e vida, que é cometido o espetáculo Um Navio no espaço - ou Ana Cristina César, com texto de Maria Helena Kühner, adaptação de Walter Daguerre e direção de Paulo José. De cara, somos confrontados com a presença do ator Paulo José, sentado em uma cadeira de escritório, com muitos papeis avulsos sobre a mesa, interpretando a si mesmo, se comunicando com o público de forma direta e informal. A proximidade é tanta que provoca a impressão de que não entramos em um teatro, e de que não estamos assistindo a um ator dando um texto escrito, e sim,de que estamos diante de um velho conhecido, tamanho o grau de naturalidade alcançado. Paulo José logo nos conta como conheceu Ana, a então analista de textos da Rede Globo de Televisão, que avaliava com rigor os textos escritos para o popular Caso Verdade, um programa de temas infelizes com final feliz. O embate entre um homem de televisão e uma jovem intelectual (na época, recém titulada Mestre em Teoria e Prática de Tradução Literária, na Inglaterra) ganha contornos cômicos. É impossível não rir - ou sorrir - diante da resposta de Ana a respeito da programação televisiva: "- Eu não vejo Tv.".

Entra em cena, então, a atriz Ana Kutner, com uma camiseta de listras naúticas, representando, de modo performático, a mítica Ana Cristina César. O contraste entre os atores é nítido e proposital, em um espetáculo fundado por antíteses, com a contradição e a contravenção como forma e foco. Sobre a atuação de Kutner, tive uma impressão ambivalente. Ela acerta o tom quando dá forma às afiadas palavras de A.C.César. Erra ao não transitar bem, nem pelas fases retradas em cena (infância, adolescência, vida adulta), nem pelas nuances pscicológicas intermediárias que compunham a complexa mente da escritora. Em muitos momentos, não consegui visualizar a mulher ardendo de vida, a escritora com a boca voraz querendo dizer o mundo, camaleônica e livre. Enxerguei uma menina mimada e insegura, circunscrita a seu quarto de pretensões, que jamais teria escrito textos tão viscerais e traduzido poetas como T.S. Elliot, Mallarmé e Sylvia Plath.

Fora esta ressalva, cumpre ressaltar o deleite estético obtido na feliz composição do cenário (assinada por Mello da Costa). Além da ambientação do escritório já referida; na lateral direita do palco, haviam espelhos suspensos, que distorciam e refletiam as projeções das palavras datilografadas dos textos de Ana Cristina em um painel de fundo. O excelente trabalho de videografismo e animação dos irmãos Vilaroca, em combinação com uma trilha sonora adequada, enleiam a atenção do público, e inundam o palco de beleza e lirismo. O hibridismo de mídias e de linguagens, assim como a ausência de uma linearidade e de um enredo tradicionais, funciona muito bem em um espetáculo que retrata a trajetória e a estética de uma escritora cuja vida e obra se baseiam no irrefreável ensejo de cruzar os limites dos abismos. Se a montagem por vezes parece um ensaio, isso se deve a uma possível tradução oblíqua de uma escrita porosa, com lacunas e aspecto de esboço, próprios da produção literária da geração dos poetas brasileiros marginais de então.

Outro aspecto positivo do texto que mescla correspondência pessoal, trechos de diários e poesias, se dá em um momento de questionamento e de angústia (A FALA ENTUPIDA) da artista ( tradutora e assídua leitora) diante do desejo de encontrar uma dicção própria, a originalidade da palavra: dizer o ainda não dito. Destaco também a multiplicidade de visões posta em cena sobre a escritora, não afunilando em uma única leitura explicações e motivações para o suicídio da poeta. O Navio no Espaço- ou Ana Cristina César, traz à tona escritos e momentos de vida da personagem-título, por isso merece ser visto e sentido. Não para responder um questionamento qualquer. Mas para afirmar e reafirmar, como toda obra de arte de qualidade, nossas irrespondíveis interrogações.



Ficha Técnica
Texto: Maria Helena Kühner
Dramaturgista: Walter Daguerre
Direção: Paulo José
Elenco: Paulo José e Ana Kutner
Figurino: Kika Lopes
Cenário: Fernando Mello da Costa
Videografismo e Animação: Rico Vilarouca e Renato Vilarouca
Iluminação: Paulo César Medeiros
Trilha sonora: Alexandre Elias
Produção executiva: Luque Daltrozo
Direção de produção: Maria Helena Alvarez
Produção: Caravana Produções, Malagueta Produções e Ana Kutner
Duração: 1h20min

Uma Ópera Cômica de Nico Nicolaiewsky



Por: Angelo Borba

No ano de 2002 ,o já reconhecidíssimo compositor e humorista Nico Nicolaiewsky, lançou no mercado o seu segundo disco autoral (o primeiro tinha sido um disco auto intitulado, lançado em 1996). Este segundo trabalho consistia em uma ópera cômica chamada “As sete caras da verdade”. De lá para cá, pouquíssimas foram as ocasiões em que fora apresentado. Por contar com uma grande equipe técnica e um numeroso elenco, os custos para possibilitar tais apresentações são bem altos, inviabilizando um projeto tão grandioso se comparado às montagens que estamos habituados a presenciar por estas bandas. Sorte a nossa que festivais como o Porto Alegre em cena nos propiciam tais momentos.

É de se notar o tamanho da produção necessária para a apresentação desta mini-ópera. Uma orquestra composta por 18 músicos e um coral que, pelas minhas contas, chega a ter 34 participantes, garante o clima necessário para tornar a apresentação mais verossímil e impactante. Vale lembrar que o coral não só canta, mas também atua, se movimenta e dialoga com os personagens, sendo, na verdade, praticamente mais um personagem da história. Possuindo importância diferenciada no espetáculo e sendo responsável por algumas das melhores cenas da apresentação.

A história é basicamente a seguinte: Um narrador anuncia a chegada de Rodolfo, o matador, a casa de Alencar. Ao que o morador da casa abre a porta, Rodolfo força sua entrada e sem muitos rodeios anuncia a eminente morte de Alencar. Mesmo tentando argumentar e entender o que se passava, Alencar é avisado de que seu fim está próximo, e depois de alguns disparos errados, Rodolfo cumpriria com sua promessa. Porém, o agora quase morto Alencar sussurra algo no ouvido de seu algoz que o deixa transtornado. Este é o mistério da peça, mas ele não demora mais de 20 minutos para ser desvendado. O problema é que cria outro mistério um pouco maior, e depois outros, que acabam por sustentarem a trama até o seu final. Fica difícil fazer uma análise mais aprofundada sem entregar alguns dos mistérios da peça.

Fica difícil fazer uma análise mais aprofundada sem entregar alguns dos mistérios da peça, e que se revelados acabam por tirar um pouco da sua graça. Por se tratar de uma ópera cômica e de suspense, e tendo sido criada por um dos maiores humoristas do Rio Grande Sul, “As sete caras da verdade” abusa dos clichês do gênero, tanto da ópera, com suas intermináveis repetições de frases, como do suspense e suas reviravoltas mirabolantes que parecem não levar a lugar nenhum, e às vezes realmente não levam. Porém, sempre com muito bom gosto, nunca caindo no entretenimento “pastelão” ou subestimando o senso de humor do público.

Alem de um ótimo espetáculo, “As sete caras da verdade” somente é apresentado em poucas ocasiões, o que acaba tornando o espetáculo raro e por isso mais especial. Nico mostra aqui, mais uma vez, o imenso potencial artístico que lhe cabe. Pois além de atuar e cantar, foi ele quem criou, com a parceria de Fernando Jankzura, e dirigiu a peça. Para quem gosta de teatro, não precisa ser de ópera necessariamente, boa música e do trabalho de Nico com o Tangos e Tragédias, fica a dica: quando tiver oportunidade de vê-lo nesta apresentação, vá!

Adriana Calcanhotto encarna a Partimpim



Por: Angelo Borba

No ano de 2004, Adriana Calcanhotto deu vazão a um desejo seu que já vinha há bastante tempo: fazer um trabalho musical direcionado para o público infantil, mas que fosse feito com carinho e respeito a este público, algo que há muito não acontecia. Alavancado pelo grande sucesso de “Eu fico assim sem você” o álbum vendeu mais de 100 mil cópias e foi muito bem recebido por público (adulto e infantil) e crítica especializada, dando fôlego para o lançamento de um segundo disco, Partimpim dois. Foi baseado neste disco que a cantora trouxe seu alter ego infantil para o 17° Porto Alegre em cena.

O teatro do Bourbon Country estava lotado nas duas apresentações da cantora, o público como já era de se esperar era formado por muitas crianças devidamente acompanhadas de seus pais, mas também haviam os casais, ou solteiros, que não tinham filhos e estavam lá para admirar o belíssimo trabalho de Calcanhotto, digo, Partimpim.

Com um palco lindamente projetado para encher os olhos da plateia, repleto de brinquedos, maquetes e penduricalhos de todos os tipos, Adriana começa o show com a faixa que abre o novo disco, chamada “Baile Particundum”, se libertando de dentro de um robô que estava no palco e que parecia ser somente mais um grande enfeite. Seguida de “Menina, menino” e “Alface”, o show mantinha um ritmo muito contagiante, sendo este embalo quebrado por outra música que foi sucesso de Partimpim um, “Saiba” foi apresentada de maneira um pouco mais swingada que a versão “música de ninar” que está no primeiro disco.

Os utensílios que ficam espalhados no palco, não são todos meramente decorativos, mas possuem outras funções ao longo da apresentação, como o trem que percorre o palco durante a execução do clássico “trenzinho caipira”, de Heitor Villa Lobos e com letra de Ferreira Gullar; as panelas e xícaras ao lado da bateria também servem de percussão em diversas músicas e a mesa que fica ao lado de Adriana e contém alguns objetos não identificáveis, servem para fazer alguns “scratches”, onde a cantora brinca de DJ. Apesar de se abastecer de recursos cênicos, os dois pontos altos da apresentação foram as duas músicas mais famosas quando se trata de Partimpim, a já citada “Eu fico assim sem você” e “Gatinha manhosa”, ambas apresentadas num formato em que predominava a simplicidade da canção.



A preocupação com público infantil era clara, não só pelo que já foi citado, mas pela maneira como Adriana se dirigia a plateia e a própria postura em cima do palco, não só dela mas também da ótima banda que a acompanhava. Em um determinado trecho da apresentação, Partimpim sai do palco para que o músico Domenico Lancelloti apresente a banda, e,de forma muito lúdica, consiga fazer com que as crianças presentes na plateia possam entender como funciona uma banda e seus respectivos instrumentos. Aliás, este é um dos pontos fracos de Adriana no show, a falta de uma melhor comunicação com o público cria certa barreira entre artista e expectador, o que acaba deixando o show com um formato para agradar adultos, não dialogando justamente com o público alvo, algo que não pode acontecer quando se trata de um projeto voltado para crianças.

Apesar de reconhecer a beleza do trabalho de Adriana em seu projeto Partimpim, fica a dúvida sobre o tamanho da relevância que possa ter este projeto nos dias de hoje. Num ambiente em que o público infantil é bombardeado por músicas e informações de todos os meios com apelo sexual banal e chulo, o que se verifica analisando o universo infantil atual é que música de criança acaba por ser funk ou “churumelas” amorosas superficiais de ídolos como Luan Santana, a proposta de Adriana de trazer à tona uma ideia de um universo infantil onde a fantasia se misture à poesia de boa qualidade acaba encontrando muito mais eco nos pais que gostariam que seus filhos se interessassem por este trabalho, do que nas próprias crianças a quem Adriana quer atingir. Resumindo, o projeto Partimpim acaba naturalmente sendo direcionado à uma projeção de criança intelectual, fora, claro, o público adulto. A abrangência que Adriana e os pais mais esclarecidos queriam com este trabalho não é concretizada.

O resultado geral é bom, mas ao final do show fica uma nítida sensação de que uma bela ideia criada por uma grande artista não consegue penetrar no imaginário infantil e ali criar a semente de algo novo. Talvez a cena que exemplifique melhor este raciocínio seja na execução das últimas músicas do repertório do show, “Lig-lig-lig-lé” e “Lição de baião”, onde um grupo de crianças se aglomerou em frente ao palco na tentativa de tocar ou simplesmente receber um “oizinho” da Partimpim, mas saíram sem ambos, pois Adriana mal chegou perto das crianças, apesar da minha torcida para que ela, pelo menos, se abaixasse para cumprimentá-las e de forma simbólica concretizasse o seu contato direto com seu público infantil.



Ficha Técnica
Criação: Adriana Partimpim
Direção: Adriana Partimpim e Leonardo Netto
Direção de palco: Jorge Ribeiro / Direção de arte: Luiz Henrique Sá
Guitarras e coro: Davi Moraes
Guitarra, Baixo, Pandeiro, Surdo e Coro: Moreno Veloso
Baixo, Baixo Synth e Coro: Alberto Continentino
MPCs, Percussões, Escaleta e Coro: Domenico Lancelotti
Bateria, Percussões acústicas, eletrônicas e Coro: Rafael Rocha
Figurino: Marcelo Pies e Danielle Jensen / Adereços: José Maçaira e Luiz Amadi
Cenário: Hélio Eichbauer
Iluminação: César de Ramires
Produção executiva: Suely Aguiar / Produção: Hiromi Konishi
Administração: Claudia Moog
Duração: 1h30min

12/09/2010

Unfortunate Days, Dias Desventurados



Me sentia aquela velhinha semi-surda da última fileira, esticando o pescoço e aguçando os ouvidos a fim de absorver o máximo de "Happy Days", a peça de Robert Wilson que veio para o 17° Porto Alegre Em Cena. A comparação com uma velhinha da última fileira podia muito bem ir perdendo a força ao passo que os minutos corriam, mas não foi bem assim. A atriz italiana Adriana Asti (Winnie), um ponto pálido - engessado - com a boca carmim e a roupa veludosa azul, surgia aos meus olhos como uma figura distante e ofuscada.

Com a premissa básica de que a personagem do irlandês Samuel Beckett, Winnie, encontra-se soterrada até a cintura, podendo gesticular apenas a parte superior; minha gana era a de visualizar claramente a expressão facial da atriz. De que outra forma captaria sua emoção? Solucionei minha pergunta concentrando-me na verborragia - de teor paradoxalmente humanista e confessional - de Winnie e suas devidas entonações. E, é claro, à famosa iluminação de Bob Wilson, que, discordando de Luiz Paulo Vasconcellos, achei-a sutil e adequada (dispensarei o adjetivo precisa, porque a precisão é um dos pilares do diretor, como bem pude conferir ano passado, em "Quartett"). E não ácida, agressiva, desesperadora, espécie de tábua de salvação; não, aqui a luz é muito menos densa ou fria do que em "Quartet". São tons de azul, amarelo e verde que preenchem todo o alvíssimo fundo. Mesmo que a luz fosse ácida, portanto corrosiva, não há nada que a terra, esse velho extintor, não apague; como bem disse Winnie ao ver seu guarda-chuva negro pegando fogo. O ocorrido provocou tal estrondo a ponto de estremecer a plateia, antes tranquila. O mesmo acontece no início dos dois atos (a peça possui intervalo): uma cortina transparente – branca - balança ao som da brisa que vai aos poucos se fortalecendo, até o som atingir seu ápice, tornar-se grave e ensurdecedor. É aí que, cortina, brisa, luz e som... Caem. FOTO: o vulcão em erupção, o iceberg, o Everest, o vazio. Se Winnie é erupção, suas palavras são lavas que escorrem. Definitivamente Wilson sabe jogar com atmosferas de oposição, nos causando aquela sensação dupla de surpresa e (des)conforto.

Happy Days é sarcasmo, a protagonista não tem dias felizes, senão a esperança de um dia feliz. "- Hoje será um dia feliz!", informa otimista ao seu marido Willie (Giovanni Battista Storti). Ela exige ser ouvida, admitindo sua tendência centralizadora, portanto egocêntrica, perante a situação em que ela e o homem se encontram: debaixo da terra. Entretanto, a fala do outro (de Willie) é baseada em grunhidos, arrotos e peidos. Então é coerente dizer que existe comunicação através da palavra? Francesa é a língua falada na peça, apesar do diretor ser norte-americano e o elenco italiano. Provavelmente Beckett via no francês uma língua nova, fresca, cheia de possibilidades, sem imposições culturais de peso, consequentemente com maior gama de nuances se posta em comparação com o inglês. Ao largar sua língua materna, Samuel Beckett renuncia (em parte) aos códigos que organizam / ordenam a sociedade, porque a língua nada mais é do que uma estrutura de códigos firmados social e historicamente de forma arbitrária. Uma montanha podia muito bem ser chamada de berinjela, não?



Winnie ocupa sua boca com palavras a qualquer momento para não ter que enfrentar o vazio, esse eterno perseguidor. Seu jorro verbal é antagônico ao silêncio. O verbo representa o domínio humano sobre o mundo, é uma apropriação ou mesmo domesticação do vivo e morto, tornando "conhecido" o desconhecido. Beckett estava ciente dessa visão unidimensional, portanto não aceitou-a em sua obra, questionando até mesmo os códigos artísticos de representação da vida.

O elemento absurdo está presente até o fechar das cortinas, o cotidiano do casal jamais é alterado pela condição de estarem enterrados, cada um faz o seu papel: Willie lê jornal e admira fotos de mulheres quase peladas, Winnie escova os dentes, faz as unhas, passa maquiagem, ameaça sua cabeça com um revólver e fala. A respeito da cena inicial, na hora vi uma palhaça escovando os dentes! Era a escova vítima cintilante e o creme dental carrasco, amei! Adriana Asti joga maravilhosamente bem com a voz (e que bom!). Saí do Theatro São Pedro pensando: ao longo de seus dias, Winnie destina o próprio destino. Controla. Tenta bloquear a melancolia, mas esta faz parte da vida. Bloquear a melancolia gera mais mal-estar, talvez melhor aceitá-la.

No segundo ato, Winnie está soterrada até o pescoço. Agora o revólver é inútil e a morte, útil. Peça em francês no território brasileiro exige tradução. Eis que esta é também precisa, ainda mais para as girafas ou para as cuícas. Ah, o meu pescoço é de alguns centímetros, por isso tinha horas em que ficava apenas lendo as legendas e ouvindo Winnie. Não me intimido ao partilhar a vocês que nesses momentos preferia estar lendo a obra impressa, seja na grama, no trem ou minha cama.

Lanço dois questionamentos e uma conclusão: em que medida as luzes e as cores traduzem o estado interior da personagem? Até que ponto auxiliam na ambientação das narrativas, dos flashbacks? A estética de Happy Days, ilustre e contemporânea, acomete, enrijece o texto dramático.



E agora, Willie?
E agora, Willie?
E agora, Willie?

Ficha Técnica
Texto: Samuel Beckett
Direção, cenário e concepção de luz: Robert Wilson
Assistente: Daniel Schulze
Assistente de Direção: Christoph Schletz
Dramaturgia: Ellen Hammer
Elenco: Adriana Asti e Giovanni Battista Stortti
Diretor Técnico: Amerigo Varesi
Desenho de Luz: A.J. Weissbard
Supervisão: Marcello Lumac
Figurinos e Maquiagem: Jacques Reynaud
Desenho de Som: Emre Sevindi
Técnico de Som: Paolo Cillerai
Eletricista: Fabio Bozzetta
Diretora de Palco: Sue Jane Stoker/Sara Thaiz Bozano
Técnico de Palco: Antonio Verde
Cabelo e Maquiagem: Jacques Reynaud/Mariarita Parisi
Administração da Companhia: Gaia Scaglione
Direção de Produção: Kristine Grazioli
Produção: Change Performing Arts e CRT (Milão/Itália) Elisabetta di Mambro e Franco Laera

26/08/2010

Bebo Glória



"A Fina Flor" é mesmo uma peça finíssima (ai, tive que fazer o trocadilho), difícil sair da Sala Álvaro Moreyra descontente, decepcionado ou apático. As anfitriãs Claudete (Thiago Pirajira) e Maria Helena (Letícia Pinheiro) contagiam com sua alegria verborrágica e completamente afetada. Não poderia se esperar menos (ou comportamento diferente) de duas locutoras de rádio estudantil de 1952. Mais do que contagiar, elas ecoam pensamentos existenciais. Sim, porque a intimidade das lembranças - tudo aquilo que não é ofuscado pelo glamour - também é explorada, ao passo que são teatralmente contadas ao público.

A solução encontrada pela diretora Júlia Rodrigues para expor o que está por trás dos discursos ensaiados, da glória, foi a divisão da peça em dois momentos que vão se revezando periodicamente: o momento objetivo, no qual as duas exaltam seus momentos de glória com um texto acelerado e movimentação corporal frenética, e o momento subjetivo, no qual a luz, assim como a velocidade do texto e os movimentos, se reduzem. O cotidiano x o poético. Ainda que essa duplicidade antagônica de atmosferas seja primordial para o desenvolvimento da peça, a quebra de ritmo incomoda, acaba arrastando o espetáculo. Entretanto, em nenhum momento se torna maçante. Ainda mais com as lindíssimas intervenções musicais (parabéns a Ricardo Pavão), onde as personagens soltam a voz (parabéns a Marlene Goidanich!) com entrega e paixão.

A glória é representada com papel laminado (prateado!), que é cintilante no contato com a luz. Claudete e Maria Helena, com movimentos idênticos, aproximam-se da boca de cena e lançam os pedaços de papel reluzentes no ar, gritando: "À glória!". Mas nunca ficam satisfeitas, repetindo incontáveis vezes. Nem mesmo quando distribuem a "glória" ao público, que deve auxiliar fazendo o mesmo gesto. Fica claro que os tempos remotos - e gloriosos - estão na lama, na lembrança cheia de neblina e nostalgia. Talvez para esconder essa verdade inconveniente, a disputa se faz presente entre as colegas de trabalho. Não há respeito nem tolerância, tudo se resume a quem foi (ou é) a rainha da festa, a melhor voz da rádio, a mais formosa. Segundo a biologia, estamos diante de uma relação desarmônica intraespecífica, a competição.

Toda a movimentação de "A Fina Flor" segue uma lógica original e lúdica que provavelmente bebeu na fonte da dança contemporânea. A naturalidade (adquirida de forma bruta pelo improviso) se sobrepõe à técnica. O descuido é raro e a marcação é bem elaborada, caminhando de mãos dadas com a iluminação. Thiago Pirajara é autor de uma façanha inusitada: construir uma personagem estereotipada (em sua persona mais superficial) sem ser um estereótipo. O que, somado à desvantagem de interpretar uma mulher (desvantagem nítida ao cantar, principalmente), é notável. Boa composição a de Claudete, com apenas um vestido e batom, nada de seios, rímel, pulseiras, brincos e outras ameaças de futuras parafernálias. Letícia Pinheiro acompanha seu parceiro de cena com o mesmo nível de empenho, quiçá com menor carisma. O qual é redimido com sua voz, encantadora.

A praticidade do teatro é um verdadeiro luxo! Um vestido pode ser posto às avessas e tornar-se uma capa usada por um nobre; cubos, cuja função primeira é servir de assento, podem abrigar um espelho, uma penteadeira e um mar de canecas. No teatro, nada é unidimensional. Agora quero destacar uma cena que marcou minha memória: a passagem onírica em que uma senhora (Letícia P.) corre atrás de um menino arteiro (Thiago P.), o qual sacode sua capa incansavelmente, jogando os pedaços de papel prateado pelos ares, numa dança onde realidade e fantasia, passado e presente são os bailarinos. O toque final é dado pelos fragmentos de textos de Clarice Lispector e Marguerite Duras.

Claudete e Maria Helena estão sempre agarradas a uma caneca antes de entrar no ar. Café? Não. Chá? Também não. Uísque? Menos. Elas bebem glória. E é claro, se entopem, abusam, quase explodem. Hilária a cena onde Claudete termina de beber, arregala os olhos e cospe um punhado de papel laminado. Daí que Maria Helena se previne, derrama o conteúdo da caneca no chão.

Por que seria a existência comparada a uma fina flor? Porque tem pouca sustentação? Porque é atrativa, entretanto frágil? Porque tem períodos de reserva e outros de prosperidade?
Sobre a efemeridade da fama, dou a palavra a Walt Whitman:

Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas

Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimônias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tateando no escuro.

Saí do teatro pisando na glória.



Ficha Técnica
Elenco/Roteiro: Letícia Pinheiro e Thiago Pirajira, a partir de material audiográfico coletado em saídas de campo e de fragmentos de textos de obras literárias de Clarice Lispector e Marguerite Duras
Criação de Figurinos: Letícia Pinheiro e Thiago Pirajira
Confecção de Figurinos: Alcinda Pinheiro
Iluminação: Cláudia de Bem
Direção Musical: Ricardo Pavão
Músicos sonoplastas: Alexandre Fritzen da Rocha (teclado e percussão) e Ricardo Pavão (violão e percussão)
Preparação Vocal: Marlene Goidanich
Orientação: Professor Irion Nolasco
Espetáculo originado nas disciplinas de Estágio de Atuação I e II
Duração: 60 min

13/08/2010

Algemas de Cristal



Ao escrever "À Margem da Vida" ou "Zoológico de Vidro", em 1945, Tennessee Williams fez um retrato bastante realista - e com imensa carga lírica, como bem é conhecido - das consequências causadas pela crise econômica de 1929 na ótica da classe média norte-americana. Tom Wingfield "narra" as lembranças de sua família antes de juntar-se à Marinha Mercante e abandonar sua família, a qual já havia perdido uma das figuras masculinas: seu pai, o personagem representado em uma fotografia emoldurada.

Bueno, vamos ao que interessa: Laura Wingfield (Franciele Aguiar) é a irmã tímida, obcecada em cuidar e limpar de uma coleção de bichinhos de vidro. Essa obsessão é símbolo para o mundo de Laura: mundo de sonhos, irrealizável, platônico. Sua beleza é maculada por um defeito físico na perna, o qual relaciono com uma passagem de "Memórias Póstumas de Brás Cubas": Por que tão bela, se coxa? Por que coxa, se bela?. Franciele Aguiar tem o biotipo perfeito para encarnar a amante de música clássica que gira a alavanca da vitrola para fugir da realidade petrificadora. Uma vez introspectiva e aérea, Laura possui diversas pausas psicológicas na encenação, as quais Franciele soube respeitar sem deixar com que a fluidez do tempo fosse comprometida.

Amanda Wingfield (Martina Frölich), mãe de Tom e Laura, é a grande hipócrita, a mártir cristã que não tem desejo sexual e nem bebe líquidos quentes, que é para evitar câncer no estômago. Amanda, segundo alguns inspirada na mãe do próprio autor, é o auge cômico da peça de Williams. A viúva consegue arrancar gargalhadas da plateia com suas neuroses e seu desespero em sair da miséria. Martina Frölich carece de um engajamento corporal mais autêntico e possui um trabalho vocal equivocado, fazendo de sua Amanda uma senhora pouco convincente, apesar de ter uma das melhores personagens em mãos. Seu ponto alto é no que diz respeito a habilidade, principalmente com os objetos cênicos - que não são poucos! -, sempre ágil em administrar várias coisas ao mesmo tempo: o texto dado, a marcação, a relação com os objetos, a significação, o olhar.

O palco nos é entregue carregado, beirando à poluição. Entretanto, em nenhum momento o cenário apresenta-se como um empecilho, pois parte dele a atmosfera realista que se instaura ao longo da encenação. É como se o público realmente visualizasse o interior da casa Wingfield, a fé cênica existe.

Tom Wingfield (Henrique Monteiro) é o homem da casa, fardo este, por ele desprezado. É com a cara amarrada que acorda todos os dias de manhã (com os berros de Amanda) para trabalhar no depósito de calçados, contrariando suas ambições e a aspiração à poesia. Também não pode se recostar no estímulo materno, que está mais para pressão do que qualquer outra coisa. Amanda repousa suas esperanças de ascenção (econômica e social) nas mãos dos filhos: Tom, no crescimento profissional, e Laura, no envolvimento com um homem rico. As frequentes idas ao cinema - palavra que certamente camuflava uma vida boemia com direito a bar, casa de prostituição ou mesmo um namorado - são o escapismo que Tom encontra de uma vida que parece mais exigir do que conceder. Henrique Monteiro tem muitas cenas onde deve perder o controle e discutir com a mãe, falha ao tropeçar no texto e, por vezes, artificializá-lo. Faz uma caricatura do jovem angustiado, sufocado. Talvez uma amenizada no caráter egoísta e intolerante de Tom fosse a chave; humanizar.

Eis que uma boa notícia chega: convencido pela mãe, Tom convida um colega do depósito (de cargo superior) para jantar com a família. Amanda começa a chiar e borbulhar de contentamento, é a chance de sua filha! Que comecem os preparativos, pois: desde as decorações até uma Laura emperiquetada, com direito à laço na cintura e tudo, pronta para ser embalada e consumida. Porém, ao escutar o nome do rapaz, Laura percebe que este estudara na mesma escola que ela, por quem nutria uma paixão reprimida. Era o espectro do passado querendo assombrá-la, despertar novamente o sentimento adormecido.

Jim O'Connor (Dudu Engers) já impressiona pelo modo como se veste, esbanjando elegância. Dudu entra em cena com um personagem belamente construído, movimenta-se de forma consciente, em uma manipulação orgânica. Encontrou uma voz adequada para o tipo galante - sem ser canastrão e cair no lugar comum - conseguindo sustentá-la. É um prazer perceber a química que ele e a parceira Franciele possuem ao contracenarem.

Amanda corre até a entrada para abocanhar o convidado fazendo uso de sua hipocrisia: ressalta o modelo de virtude que - ela tem certeza - Jim possui, ao passo que propagandeia o tesouro de filha ao qual deu à luz, afirmando dotes culinários e domésticos. Após o jantar, a luz do apartamento é cortada, levando Jim e Laura à uma conversa banhada à luz de velas. Ela desiste de se esconder e aceita ser reconhecida; ele, de qualquer forma, não perde tempo ao utilizar seu charme para encantá-la. É bastante cavalheiro e conclui seu pensamento dizendo que o problema de Laura é ter complexo de inferioridade, tendo como solução imediata um beijo (!). Pronto, o estrago está feito. O rapaz deixa a casa perturbado, dizendo que marcou encontro com a noiva Bete. A garota fica no chão, arrasada, o coração maltratado. E a mãe, completamente frustrada ao saber da existência da tal Bete, desconta o desespero no filho, sem medo de usar palavras proibidas até então. A troca de palavras entre mãe e filho é a gota d'água para Tom, que resolve fugir.

"À Margem da Vida", cujo título original é "The Glass Menegarie", é uma representação realista que se funde com uma atmosfera de sonho para conjugar aquilo que os personagens são com o que desejam ser. A divisão entre uma e outra são as algemas de cristal criadas por nós mesmos. E destas, uma consequência é certa: cair à margem da vida.

Até que... Puf. Passou.
A vida é um sopro.



Ficha Técnica
Autor: Tennessee Williams
Direção: Patrick Peres
Elenco: Dudu Engers, Franciele Aguiar, Henrique Monteiro e Martina Fröhlich
Iluminação: Luis Eduardo
Orientação: Xico de Assis e Rodrigo Ruiz
Fotos: Rodrigo Ruiz
Duração: 1h30min