28/09/2010
A Beleza Salvará o Mundo!
Por: Andrei Moura e Guilherme Nervo
Em uma época dominada por rigorosos padrões estéticos, busca incessante pela juventude eterna, cirurgias plásticas em profusão – enfim, o culto ao corpo perfeito em detrimento do desenvolvimento espiritual -, a frase (que dá título a esta crítica) de Fiodór Dostoievski poderia ser incompreendida, ou mal compreendida. Na verdade, após assistirmos à montagem do lituano Eimuntas Nekrosius, O Idiota, baseada no romance homônimo do escritor russo, estendemos o seu sentido a outras direções. De fato, as cinco horas de duração do espetáculo, que à primeira vista poderiam apreender o espectador, são dissipadas diante da – belíssima – apresentação assinada por um dos mais renomados diretores bálticos.
A trama gira em torno da ingenuidade de um jovem de 26 anos, o Príncipe Míchkin ou Lev Nikoláevitch, o epiléptico (idiota), que dá título ao romance. A fim de receber sua herança, Lev retorna da Suíça, onde tratava sua enfermidade, chegando em sua terra natal: São Petersburgo, onde morava sua família, agora falecida. Devido a sua sinceridade e honestidade, o príncipe é envolvido sistematicamente em redes de intrigas, nas quais o seu caráter humanitário termina por "condená-lo". Tal como Dom Quixote, de Cervantes, (que, aliás, serviu de inspiração para Dostoievski na composição do personagem ao lado de Jesus Cristo), Míchkin é um sujeito autêntico em uma sociedade de valores inautênticos. Por isso, o idiota fala com convicção e complexidade, diferente da simplicidade alienada das famílias que, por sua vez, representam a sociedade.
A peça, dividida em quatro atos separados por três intervalos de 15 minutos, é uma lição de como modernizar sem descaracterizar. Toda a atmosfera cinzenta e soturna do realista russo, que produziu o texto em meio a severas dívidas de jogo e crises de epilepsia, estão presentes na montagem. Desde o figurino com pequena variação cromática, no qual a cor preta é dominante; a sobriedade da luz; até o cenário econômico/funcional. Destaco a porta de fundo, suspensa por cordas e desprovida de paredes.
A trilha sonora pontua todo o percurso das ações iniciais, revelando-se excessiva, principalmente no primeiro ato, o mais longo. A sensação causada é a de monotonia, de mesmo tom. Em contrapartida, a peça alavanca por intermédio de dois momentos: a chegada das mulheres em cena (elas surgem em espirais libidinosas, são a pulsão sexual personificada) e, mais para o final do primeiro ato, o estrondo causado por um tiro. A plateia, antes milho, é agora pipoca. O inesperado capta a atenção conquistando-a. O diretor não precisa recorrer ao apelo fácil para seduzir, sua dramaturgia e encenação bastam. Objetos e (moviment)ações são ressignificados, adquirindo outras conotações. Adentramos a uma construção cênica metafórica que emana um raio de sentidos variados, partindo de elementos simbólicos e significativos. Uma comunicação mais intuitiva e sensorial ocasiona uma jornada particular dentro de si. É o que acontece, por exemplo, na cena magistral (de grande impacto emocional e visual), na qual um espelho suspenso por uma corda é girado pelas mãos do idiota em torno de uma mulher aos prantos, Nastásia Filíppovna. Então, fica registrada nossa leitura: a passagem pode ser compreendida como a vaidade de Filíppovna entrando em crise, a beleza voltando-se contra o belo. A fumaça é outro elemento carregado de simbologia e plasticidade que, muito presente, materializa o caráter pouco definido das personagens, a nebulosidade.
Em termos de brumas e borrada nitidez, a presença feminina (mais complexa e multifacetada) invade o palco se configurando como um elemento gerador de conflito entre os homens. Ao final do primeiro ato, estamos certos de que Nastásia será o pivô da história, dada a quantidade de pretendentes e alvoroço causado pelo seu poder de sedução. Somente no segundo ato descobrimos a relevância de uma personagem apagada/desmaiada, a raquítica Aglaya. A mudança de foco surpreende, pois Aglaya é reprimida, possui gestos trêmulos e uma estrutura emocional fragilizada. Facilmente deixa-se abater, como uma árvore de fibras maleáveis que se contorce e perde as folhas com o sopro dos ventos. Ao conhecer o príncipe Míchkin, a mulher sem abundâncias físicas e com sentimento de inferioridade, agora tem a chance de dominar ao invés de ser dominada. A paz de espírito, a identificação e o reconhecimento, são encontradas no Idiota. O que me remete ao diálogo (apaixonado) travado entre os dois, sentados em berços de ferro, como se postos na condição de crianças, de idiotas. A ruiva com detalhes verdes em sua roupa (Aglaya) é dona de uma atuação brilhante, comparável a uma semi-morta flor que, ao ser irrigada, desabrocha esplêndida.
A literatura de Dostoievski, ao mergulhar, com perspicácia inovadora, no lado sombrio dos indivíduos e das relações, transformou-se em fonte de inspiração para muitos escritores, sendo concebida como uma das mais potentes referências para a literatura ocidental. O teatro de Nekrosius,quando opta por uma encenação longa, em uma época como a nossa, demarcada pela utilização frenética do tempo, propõe uma importante reflexão a respeito do própria função do teatro: “Teatro é síntese, mas não brevidade. É um antídoto contra a pressa insensata dos nossos tempos”. Por isso insistimos: o teatro lhe salvará do mundo!
Ficha Técnica
De: Fiódor Dostoievski
Direção: Eimuntas Nekrosius
Elenco: Daumantas Ciunis, Salvijus Trepulis, Elzbieta Latenaite, Diana Gancevskaite, Margarita Ziemelyte, Vidas Petkevicius, Migle Polikeviciute, Vaidas Vilius, Vytautas Rumsas, Ausra Pukelyte, Vytautas Rumsas Jr., Neringa Bulotaite e Tauras Cizas Cenografia: Marius Nekrosius
Figurinos: Nadezda Gultiajeva
Desenho de luz: Dziugas Vakrinas
Música original: Faustas Latenas
Desenho de som: Arvydas Duksta
Produção: Meno Fortas
Duração: 5h20min / Legendas em português
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