05/03/2011

Transformação Alcoólica





Durante o regime comunista do Leste europeu, o asqueroso Mestre-cervejeiro (Margarida Leoni Peixoto) deseja obter segredos do seu funcionário (Marcelo Adams) abusando de todo o alcance de sua autoridade. Seja à força ou através da sugestão, em Goela Abaixo ou Por Que Tu Não Bebes? O caminho da cerveja está garantido.



Não somos amigos?
Sim, sim.
Então beba!




Um dos mais significativos diferenciais dessa montagem de muito bom gosto é o que vem junto da entrega do ingresso: uma cerveja! É claro que a plateia não fica embriagada como as personagens, não se trata disso, o genial está na sugestão que o ato de beber promove, uma vez que o Mestre Cervejeiro não fala mais que 30 palavras sem oferecer cerveja ao empregado. A sensação é de aconchego, de atmosfera claramente envolvente, firme, por isso não há como distanciar-se das convincentes personagens russas cobertas por grossos casacos para enfrentar o inverno europeu. E para que essa linguagem saísse vitoriosa, me pergunto: há lugar mais adequado do que o Teatro de Arena? Olha, difícil. A plateia distribuída pelos três lados consegue enxergar aos outros e fica a poucos metros dos atores, portanto sendo convidada a relaxar e penetrar Goela Abaixo ou Por Que Tu Não Bebes?, cujo cenário é magnífico: sujo, simples e bem utilizado. Em frente a uma bandeira do socialismo, há uma pilha de garrafas cintilantes formando uma figura geométrica; uma escrivaninha tomada por papeis, uma família de baratas mortas e garrafas com cerveja até o gargalo; um balde velho e uma porção de luminárias no teto.






O regime comunista não foi explorado nem parcamente, assim como o potencial do roteiro, que se mostra maçante, banal e repetitivo. Cai diversas vezes no lugar comum, porém estou certo de que se trata de uma escolha proposital. Inegável dizer que isso acaba ofuscando todos os outros pontos positivos. Como teatro de ator, orgulha! Quem segura as pontas do roteiro é Margarida Leoni Peixoto, aqui muito diferente de como estava em Mães & Sogras. É uma atriz maravilhosa, podendo ser comparada à Arlete Cunha, que também demonstrou muito talento ao encarnar uma personagem masculina em Sonho de Uma Noite de Verão, montagem do clássico de William Shakespeare genuinamente executada pela Cia do Giro. Estas duas atrizes agarraram seus papéis e driblaram o obstáculo sexual com afinco e êxito. Margarida encontrou a voz ideal, o corpo ideal, as reações ideais e os tiques ideais (destaque para a língua maliciosa que saía da boca diversas vezes e as sobrancelhas inquietas). Marcelo Adams não chama tanto foco quanto ela, ele está afiado é na direção do espetáculo. Em tese, seu personagem nem deveria chamar atenção, pois é a figura oprimida do jogo de opressões que se instala no escritório encardido do Mestre Cervejeiro. O ator brilha principalmente quando é obrigado a aceitar os incontáveis copos cheios de cerveja e bebê-los com muita dificuldade, literalmente goela abaixo, ainda que seja diminuído quando sua companheira ergue a voz. Não somente porque ela é a figura dominante, mas porque a construção de sua personagem é muito mais crível e resistente, cativa o espectador. Bons exemplos são duas cenas que poderiam ser repetidas milhares de vezes conservando sua carga de comicidade: a cena em que o Mestre apalpa o sexo e corre em direção ao banheiro, congelando em frente à bandeira na posição de líder comunista, soltando uma risada grave e embriagada; e a cena em que ele resgata duas baratas do balde cinzento e continua seu discurso pessimista em relação à humanidade, gesticulando com as baratas no ar, em seus olhos e quase jogadas encima da plateia. A sensação é de que fazemos parte ativa do espetáculo, podendo inclusive ser atingido pelo cadáver de uma barata.




Mais perto do final, com ambos já tropicando e soluçando, podres de bêbados, surgem jogos de divertimento como acertar bolinhas de papel no balde ou confessar segredos debaixo da escrivaninha. Sob efeito do álcool, o empregado consegue finalmente rebater as palavras do Mestre Cervejeiro, demonstrando também possuir uma voz e a possibilidade de se impor. Mas em minutos, após essa demonstração de força, cai no choro. Lamenta sua posição, o trabalho que exerce, a vida que leva. Nesse momento as personagens trocam de chapéu e com este adereço do figurino vai junto todas as nuances da personagem, provavelmente para explicitar que um pode tomar o papel, e portanto as características do outro.


Ficha técnica
Texto: VACLAV HAVEL
Direção: MARCELO ADAMS
Elenco: MARCELO ADAMS e MARGARIDA LEONI PEIXOTO
Cenografia: MARCELO ADAMS
Figurinos: RÔ CORTINHAS
Iluminação: FERNANDO OCHÔA
Trilha sonora: MARCELO ADAMS e RAFAEL FERRARI
Fotografia: JÚLIO APPEL
Produção: RODRIGO RUIZ e CIA. DE TEATRO AO QUADRADO
Realização: CIA. DE TEATRO AO QUADRADO
www.marceloadams.blogspot.com
Duração: 80 minutos
Faixa etária mínima: 12 anos


01/03/2011

Chama Acesa




O Pigmalião de Leandro Ribeiro é longo, simples, audacioso, fílmico, e cansativo. Passei inquietas duas horas dentro da Sala Álvaro Moreyra, esperando uma reviravolta, uma lufada revigorante de energia que dissipasse o tédio causado por grande parte das cenas, ainda que o figurino e o cenário sejam prova de heróica resistência à falta de incentivo e dinheiro. O texto dramático de George Bernard Shaw, a partir do qual a montagem traçou sua linguagem cênica, não foi decisivo para consolidar o quadro decepcionante que Pigmalião acabou se revelando, e sim os que respiraram o ar das personagens de Shaw: o elenco. Talvez a aparição do potencial dramático de um ator seja contestável em apenas uma encenação, assim como ela não define se um ator é bom ou ruim. Ou melhor, se está bem ou mal, porque tudo pode ser trabalhado para futuras conquistas. Agora, se eu, na posição de quem analisa o objeto artístico com imparcialidade e concentração dissesse que o elenco da peça desempenhou interpretações verdadeiras ou mesmo admiráveis, não estaria fazendo jus à minha posição, estaria enganando o leitor, e o que é ainda pior, passando a mão aprobativa na cabeça dos atores e atrizes. Esta não é, de forma nenhuma, minha função. Meu dever é configurar-me com um apurado olhar externo, que expressa suas percepções a respeito do que vê, relaciona com outras linguagens, pesa argumentos, filtra considerações e procura manifestar-se com distância, livre de contaminações.



Grosso modo, o elenco de Pigmalião deixa perceber sua aspiração às artes cênicas, entretanto, erra a fala, esculpe a caricatura, fica de costas para a plateia, fala para dentro, força determinada forma de caminhar, dá o texto lido e encosta no amadorismo. Tudo isso seria compreensível se a peça fosse resultado de um curso de iniciação ou mesmo formação teatral, no qual a carga horária pode ser pequena e a exigência ínfima. Entretanto, a peça em questão é resultado universitário, mais especificamente da UFRGS. E aqui a tenra idade ou a inexperiência não cabem como justificativa para modelos de interpretações tão fracos. A cena inicial adianta o relacionamento conflituoso entre Freddy (Rodrigo Santana) e sua mãe (Ketti Cardoso), porém demora a alçar vôo e não diz muito, podendo ser perfeitamente cortada, como é o caso de outras cenas que poderiam ter sido enxugadas para que a essência tivesse atenção e cuidado especial. Ketti Cardoso mal aparece como madame, mas em cena, não poderia ter sido mais artificial. Melhora ao interpretar a governanta de Higgins, ainda que peque ao apresentar sempre o mesmo tom de voz e andar de forma rígida.




Ao sermos transportados para uma praça, os protagonistas são apresentados: a vulgar florista (Fernanda Majorczyk) de contagiante energia, Eliza Garapa; o arrogante professor de fonética, porém excelente profissional Henry Higgins (Douglas Carvalho) e seu estimado amigo, o delicado Coronel Pickering, interpretado por Paulo Roberto Farias corretamente, porém sem ousadia. Ao perceberem a personalidade vívida e origem humilde de Eliza, os amigos fazem uma aposta: Higgins terá o prazo de seis meses para fazer com que a florista passe despercebida em um baile de gala, tendo aulas de língua e de boas maneiras. Higgins e Eliza estabelecem a clássica relação de opressor e oprimido, travando uma explosiva batalha entre a autoridade de um e a cultura da outra. Ao saber da novidade, Alfredo Garapa (Patrick Peres), o pai de Eliza, corre até a casa do profissional da fala para uma íntima conversa, e acaba saindo com os bolsos cheios. Para fechar o quadro, foi colocado no testamento de um homem rico, prestes a morrer, que termina por condená-lo a viver para os outros, satisfazendo favores, empréstimos e amizades instantâneas, todos na tentativa de sugar seu dinheiro. O enriquecimento de Alfredo é contado por ele de forma confusa e repentina, não convencendo. E é por isto que, por mais que Cícero tenha se esforçado em seu papel - criando uma forma de falar idêntica a de um caipira, uma postura informal e abusada -, suas falas anestesiam o interesse pela narrativa de Pigmalião, principalmente por não acrescentarem ao conflito central, estando desconectadas.








O diretor escolheu o caminho da regionalização, referindo-se à Ilha das Flores e Usina do Gasômetro, o que funciona como gostoso artifício humorístico, entretanto cai por terra ao sair da boca de figuras absolutamente estrangeiras. No caso, ingleses do início do século 20. Henry Higgins, o personagem de Douglas Carvalho, é o que podemos chamar de burguês seguro de si. Ele atinge o auge da segurança pessoal devido aos longos argumentos e as mil cartas na manga, sempre obtendo a palavra final e exibindo seu conhecimento, principalmente linguístico e geográfico-cultural. Verdade seja dita: Higgins, de acordo com Pigmalião, não passa de um professor de fonética soberbo, pedante, mimado e terrivelmente temperamental. Impossibilitando a plateia de nutrir simpatia pela figura extremamente afetada e caricata construída por Douglas. E o pior, o ator tropeça no texto (naturalmente possui o mais longo) ao falar descontrolado, sem articular. Diferente de Lorde Henry, personagem de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que possui várias das características de Higgins, porém consegue emanar simpatia e admiração.




Na Grécia antiga, Pigmalião esculpiu uma linda mulher que batizou como Galatea, que mais tarde ganhou vida pelas mãos da deusa Afrodite. A transformação de Eliza em uma mulher da alta sociedade acontece aos trancos e barrancos, pois a garota não tem instrução e recebe as ordens de Higgins como uma criança as receberia. A sequencia que mostra as lições de Eliza é bárbara, Fernanda Majorczyk encarna o espírito do palhaço irreverente, atrapalhado e absolutamente ingênuo. Lembra Chaplin, lembra Chaves. Conquista a plateia através da figura cômica que contrapõe e questiona as regras da supremacia desenfreada de Higgins. Fernanda apresenta – e tem – o corpo excelente para a personagem, caminha com as pernas exageradamente abertas e com os braços esticados envolvendo o balde de flores. Sua voz não fica atrás, sem nunca tropeçar na forma errada e hilária de falar por ela construída. Destaque especial para a cena em que o professor a entope de algodões e pede para que repita um trava língua, o resultado é desastroso, mas a cena esplêndida. Eliza aprende a falar corretamente e a portar-se de forma elegante, anda com leveza e veste-se como princesa, é como se Fernanda tivesse mudado de papel, dada a eficácia da transformação no roteiro e no trabalho da atriz. Quanto à cena do baile, acredito que foi perdida, pois em nenhum momento senti que as figuras em roupa de gala estivessem realmente dentro de um grande salão, entre danças, risos e burburinho. O elemento mais agravante foi a atuação de Nani Goulart como a embaixatriz sueca, que abusou do estereótipo ao forçar o sotaque e levantar o nariz como símbolo de vaidade, dando contornos medíocres para sua personagem.




Eliza engana o baile inteiro, ganhando a aposta. Entretanto, escuta as vanglórias de Higgins com a cara fechada, até que resolve expressar o que sentia. Não compreende o motivo de ter sido obrigada a passar por toda essa transformação, está indignada por ter feito parte de um experimento caprichoso. Naturalmente o homem surta, reunindo toda a força de sua voz para retrucar. O mais estranho desta cena é que a própria Eliza Garapa (no início) foi deliberadamente até a casa do professor (com dinheiro) no ensejo de aprender liNções, como ela dizia. Novamente, temos a crença testada devido à problemas da narrativa. Cansada da situação, a dama encontra abrigo na casa da Sra. Higgins (Michele Csordas), que a ensina a pintar magicamente de um dia para o outro. Michele foi a escolha perfeita para o papel de mãe do protagonista, com a única ressalva de que poderia diminuir suas feições por vezes exaltadas e acentuar sua autoridade ao gritar para o filho “comportamento, Henry!”. Higgins, ao acordar, fica desesperado, admite ter caído em paixão por Eliza e inclusive depender de seus encantos, mas agora é tarde demais. Neste último ato os atores – supostamente aquecidos e com as personagens à flor da pele – entregam um físico cansado com o personagem praticamente apagado, tal chama resistindo ao vendaval impiedoso.






Ficha Técnica

Texto: Bernard Shaw
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco:
Fernanda Majorczyk - Eliza Garapa
Douglas Carvalho - Henrique Higgins
Paulo Roberto Farias - Coronel Pickering
Patrick Peres - Alfredo Garapa
Michele Csordas - Senhora Higgins
Ketti Cardozo - Dona Cândida/Senhora Eynsford-Hill
Taylor Mendonça - Engraxate/Padre Avelino/Nepomuck
Nani Goulart - Embaixatriz Sueca
Rodrigo Santanna - Fred Eynsford-Hill
Trilha Sonora Original: Julian Eilert e Caoan Goulart
Orientação: Lígia Motta
Realização: Cia. de Teatro Gato&Sapato