01/03/2011

Chama Acesa




O Pigmalião de Leandro Ribeiro é longo, simples, audacioso, fílmico, e cansativo. Passei inquietas duas horas dentro da Sala Álvaro Moreyra, esperando uma reviravolta, uma lufada revigorante de energia que dissipasse o tédio causado por grande parte das cenas, ainda que o figurino e o cenário sejam prova de heróica resistência à falta de incentivo e dinheiro. O texto dramático de George Bernard Shaw, a partir do qual a montagem traçou sua linguagem cênica, não foi decisivo para consolidar o quadro decepcionante que Pigmalião acabou se revelando, e sim os que respiraram o ar das personagens de Shaw: o elenco. Talvez a aparição do potencial dramático de um ator seja contestável em apenas uma encenação, assim como ela não define se um ator é bom ou ruim. Ou melhor, se está bem ou mal, porque tudo pode ser trabalhado para futuras conquistas. Agora, se eu, na posição de quem analisa o objeto artístico com imparcialidade e concentração dissesse que o elenco da peça desempenhou interpretações verdadeiras ou mesmo admiráveis, não estaria fazendo jus à minha posição, estaria enganando o leitor, e o que é ainda pior, passando a mão aprobativa na cabeça dos atores e atrizes. Esta não é, de forma nenhuma, minha função. Meu dever é configurar-me com um apurado olhar externo, que expressa suas percepções a respeito do que vê, relaciona com outras linguagens, pesa argumentos, filtra considerações e procura manifestar-se com distância, livre de contaminações.



Grosso modo, o elenco de Pigmalião deixa perceber sua aspiração às artes cênicas, entretanto, erra a fala, esculpe a caricatura, fica de costas para a plateia, fala para dentro, força determinada forma de caminhar, dá o texto lido e encosta no amadorismo. Tudo isso seria compreensível se a peça fosse resultado de um curso de iniciação ou mesmo formação teatral, no qual a carga horária pode ser pequena e a exigência ínfima. Entretanto, a peça em questão é resultado universitário, mais especificamente da UFRGS. E aqui a tenra idade ou a inexperiência não cabem como justificativa para modelos de interpretações tão fracos. A cena inicial adianta o relacionamento conflituoso entre Freddy (Rodrigo Santana) e sua mãe (Ketti Cardoso), porém demora a alçar vôo e não diz muito, podendo ser perfeitamente cortada, como é o caso de outras cenas que poderiam ter sido enxugadas para que a essência tivesse atenção e cuidado especial. Ketti Cardoso mal aparece como madame, mas em cena, não poderia ter sido mais artificial. Melhora ao interpretar a governanta de Higgins, ainda que peque ao apresentar sempre o mesmo tom de voz e andar de forma rígida.




Ao sermos transportados para uma praça, os protagonistas são apresentados: a vulgar florista (Fernanda Majorczyk) de contagiante energia, Eliza Garapa; o arrogante professor de fonética, porém excelente profissional Henry Higgins (Douglas Carvalho) e seu estimado amigo, o delicado Coronel Pickering, interpretado por Paulo Roberto Farias corretamente, porém sem ousadia. Ao perceberem a personalidade vívida e origem humilde de Eliza, os amigos fazem uma aposta: Higgins terá o prazo de seis meses para fazer com que a florista passe despercebida em um baile de gala, tendo aulas de língua e de boas maneiras. Higgins e Eliza estabelecem a clássica relação de opressor e oprimido, travando uma explosiva batalha entre a autoridade de um e a cultura da outra. Ao saber da novidade, Alfredo Garapa (Patrick Peres), o pai de Eliza, corre até a casa do profissional da fala para uma íntima conversa, e acaba saindo com os bolsos cheios. Para fechar o quadro, foi colocado no testamento de um homem rico, prestes a morrer, que termina por condená-lo a viver para os outros, satisfazendo favores, empréstimos e amizades instantâneas, todos na tentativa de sugar seu dinheiro. O enriquecimento de Alfredo é contado por ele de forma confusa e repentina, não convencendo. E é por isto que, por mais que Cícero tenha se esforçado em seu papel - criando uma forma de falar idêntica a de um caipira, uma postura informal e abusada -, suas falas anestesiam o interesse pela narrativa de Pigmalião, principalmente por não acrescentarem ao conflito central, estando desconectadas.








O diretor escolheu o caminho da regionalização, referindo-se à Ilha das Flores e Usina do Gasômetro, o que funciona como gostoso artifício humorístico, entretanto cai por terra ao sair da boca de figuras absolutamente estrangeiras. No caso, ingleses do início do século 20. Henry Higgins, o personagem de Douglas Carvalho, é o que podemos chamar de burguês seguro de si. Ele atinge o auge da segurança pessoal devido aos longos argumentos e as mil cartas na manga, sempre obtendo a palavra final e exibindo seu conhecimento, principalmente linguístico e geográfico-cultural. Verdade seja dita: Higgins, de acordo com Pigmalião, não passa de um professor de fonética soberbo, pedante, mimado e terrivelmente temperamental. Impossibilitando a plateia de nutrir simpatia pela figura extremamente afetada e caricata construída por Douglas. E o pior, o ator tropeça no texto (naturalmente possui o mais longo) ao falar descontrolado, sem articular. Diferente de Lorde Henry, personagem de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, que possui várias das características de Higgins, porém consegue emanar simpatia e admiração.




Na Grécia antiga, Pigmalião esculpiu uma linda mulher que batizou como Galatea, que mais tarde ganhou vida pelas mãos da deusa Afrodite. A transformação de Eliza em uma mulher da alta sociedade acontece aos trancos e barrancos, pois a garota não tem instrução e recebe as ordens de Higgins como uma criança as receberia. A sequencia que mostra as lições de Eliza é bárbara, Fernanda Majorczyk encarna o espírito do palhaço irreverente, atrapalhado e absolutamente ingênuo. Lembra Chaplin, lembra Chaves. Conquista a plateia através da figura cômica que contrapõe e questiona as regras da supremacia desenfreada de Higgins. Fernanda apresenta – e tem – o corpo excelente para a personagem, caminha com as pernas exageradamente abertas e com os braços esticados envolvendo o balde de flores. Sua voz não fica atrás, sem nunca tropeçar na forma errada e hilária de falar por ela construída. Destaque especial para a cena em que o professor a entope de algodões e pede para que repita um trava língua, o resultado é desastroso, mas a cena esplêndida. Eliza aprende a falar corretamente e a portar-se de forma elegante, anda com leveza e veste-se como princesa, é como se Fernanda tivesse mudado de papel, dada a eficácia da transformação no roteiro e no trabalho da atriz. Quanto à cena do baile, acredito que foi perdida, pois em nenhum momento senti que as figuras em roupa de gala estivessem realmente dentro de um grande salão, entre danças, risos e burburinho. O elemento mais agravante foi a atuação de Nani Goulart como a embaixatriz sueca, que abusou do estereótipo ao forçar o sotaque e levantar o nariz como símbolo de vaidade, dando contornos medíocres para sua personagem.




Eliza engana o baile inteiro, ganhando a aposta. Entretanto, escuta as vanglórias de Higgins com a cara fechada, até que resolve expressar o que sentia. Não compreende o motivo de ter sido obrigada a passar por toda essa transformação, está indignada por ter feito parte de um experimento caprichoso. Naturalmente o homem surta, reunindo toda a força de sua voz para retrucar. O mais estranho desta cena é que a própria Eliza Garapa (no início) foi deliberadamente até a casa do professor (com dinheiro) no ensejo de aprender liNções, como ela dizia. Novamente, temos a crença testada devido à problemas da narrativa. Cansada da situação, a dama encontra abrigo na casa da Sra. Higgins (Michele Csordas), que a ensina a pintar magicamente de um dia para o outro. Michele foi a escolha perfeita para o papel de mãe do protagonista, com a única ressalva de que poderia diminuir suas feições por vezes exaltadas e acentuar sua autoridade ao gritar para o filho “comportamento, Henry!”. Higgins, ao acordar, fica desesperado, admite ter caído em paixão por Eliza e inclusive depender de seus encantos, mas agora é tarde demais. Neste último ato os atores – supostamente aquecidos e com as personagens à flor da pele – entregam um físico cansado com o personagem praticamente apagado, tal chama resistindo ao vendaval impiedoso.






Ficha Técnica

Texto: Bernard Shaw
Direção: Leandro Ribeiro
Elenco:
Fernanda Majorczyk - Eliza Garapa
Douglas Carvalho - Henrique Higgins
Paulo Roberto Farias - Coronel Pickering
Patrick Peres - Alfredo Garapa
Michele Csordas - Senhora Higgins
Ketti Cardozo - Dona Cândida/Senhora Eynsford-Hill
Taylor Mendonça - Engraxate/Padre Avelino/Nepomuck
Nani Goulart - Embaixatriz Sueca
Rodrigo Santanna - Fred Eynsford-Hill
Trilha Sonora Original: Julian Eilert e Caoan Goulart
Orientação: Lígia Motta
Realização: Cia. de Teatro Gato&Sapato

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