25/02/2011

Como Diria...





Num primeiro relance, lia-se O Bordel das Irmãs Metralha em negrito, cravado na placa circular com as letras rodeadas por lâmpadas incandescentes, lembrando os antigos camarins de estrelas. Todavia, as lâmpadas estavam apagadas, e não por acaso, pois uma figura cintilante e over – vestida com um roupão de onça pintada e o pescoço coberto por penugens laranjas - cruzava o palco remoendo suas mágoas: informava ao público que o bordel estava falido, ninguém mais o frequentava.



Mamãezinha Querida (João Carlos Castanha) é a soberba proprietária transexual do estabelecimento, cujos móveis ainda guardavam o glamour dos anos dourados. Inclusive, o cenário é reflexo das personalidades escancaradas que pisam o palco do Teatro Renascença, revelando um abuso de cores e objetos luxuosos muito bem-vindos da cenografia e da direção. Castanha leva apenas pouco mais de alguns minutos para conquistar boa parte da plateia com sua interpretação extremamente carismática. A tarefa que julgo ser a mais difícil é alcançar a construção de uma personagem crível, dado seu temperamento singular: arrogante e opressora até o último fio de cabelo tingido, do brilho labial ou da jóia espalhafatosa. Seja como for, Castanha consegue! Desvia sua personagem da tendência mais comum: tornar-se uma drag queen antipática. E o que me dá a certeza de que Mamãezinha pescou boa parte da plateia foram as fortes gargalhadas provocadas pela enxurrada de piadas e referências populares cômicas; todas seguidas pelo implacável bordão: "Como diria..."








Após alguns trovões avisarem que o tempo estava violento lá fora, irrompe o som de um trovão mais forte, interrompendo a tentativa de suicídio da dona do bordel e promovendo a deixa necessária para que a primeira futura irmã metralha fosse conhecida: Carmen, a bailarina! Com o pouco tempo que tem antes do próximo trovão, Mamãezinha é habilíssima em ofender Carmen, caçoando de suas bochechas salientes. Só não continua seu discurso opressor por causa da segunda aparição: Beatriz, a atriz! Enquanto a elegante, alta e magra recém-chegada de sobretudo cinza (no melhor estilo Casablanca) conversa com Mamãezinha, surge uma terceira figura: Ingride, a turista! De mapa nas mãos e envolta por uma capa de chuva amarela, a obesa pergunta: Is this Mexico? Para completar o quadro de espanto chega a quarta e última futura irmã metralha: Selma, a caipira! Mulher feia com os traços cansados, os dentes podres e a roupa rasgada. Antes que a velha proprietária fizesse alguma coisa a respeito, as meninas já estavam instaladas e prontas para arrasar.




Cada uma tem sua vez, seu momento de estrela debaixo do holofote. E o mais ridículo – que muito vem a somar pontos positivos – é o fato de elas serem retratadas sem idealizações. São destrambelhadas, erram a coreografia, a letra da música, desafinam e terminam esbaforidas; entretanto, nunca perdem a pose. Esta deve estar sempre intacta, deve ser uma fortaleza resistente à luxúria das emoções. A bailarina de roupas flexíveis que dança e canta ao som da muito adequada Let Me Dance For You é interpretada por Glória Crystal, cujo desempenho causa euforia na plateia, principalmente quando revela (em voz metálica) ser metade mulher, metade máquina. Toda essa energia manifestada pelos expectadores é canalizada internamente ao ouvirmos a emocionante canção de Beatriz, que ao tirar o sobretudo dos anos ’40 revela suas curvas através do vestido negro cheio de brilhantes. Aqui a dublagem funciona perfeitamente, ninguém diz que o ator Everton Barreto está dublando. A prova máxima de seu talento se dá quando a personagem compartilha sua história no microfone: é uma atriz decadente que teve o bico do seio decepado por Mr. Knife, um atirador de facas. Mais tarde descobriremos que Carmen e Beatriz, em sua época de circo, foram apaixonadas pelo mesmo cafajeste, o atirador de facas. Esse detalhe serve apenas de mais um motivo para a acirrada disputa das irmãs metralha, sempre querendo passar uma por cima da outra.








Chega então a vez de Ingride, que chacoalha a energia do público compenetrado. Dona de forte sotaque, a transexual de pele negra afirma ser alemã. É difícil contrariar o baixo alcance da voz de Dandara Rangel, porém sua interpretação é espetacular, brilhando mais que o próprio figurino! Ao ser insultada de litrão de Frukito, obviamente por Mamãezinha, Ingride resolve despir sua capa de chuva ao som de New York, New York: usa um vestido apertado com as cores da bandeira dos Estados Unidos e uma porção de acessórios com a mesma temática nacionalista. A norte-americana é infalível ao interagir com o público, que não consegue ficar sério diante de uma figura daquele tamanho cantando hilariamente com a língua trepidante e pulando tal qual uma baleia.




Na hora de Selma, ela está acanhada, mas não perde a vez de soltar a voz com honestidade e orgulho pelo seu povo nordestino. Ela é tachada de mulher do saco e partidária do MST, porém acaba dando inesperada prova do seu potencial ao cantar fervorosamente em defesa da separação do Nordeste autossuficiente de um Brasil explorador em Nordeste Independente, com a voz de Elba Ramalho, que se mostrou perfeita para a personagem Selma. Mamãezinha Querida começa a respeitá-la somente quando a jogam dentro de um vestido armado, pintam exageradamente seu rosto e alisam seu cabelo, agora ruivo; ela passa por uma transformação radical. Lauro Ramalho constrói uma personagem persuasiva em sua ingenuidade, sendo ironicamente a única nascida mulher. O grande feito do roteiro sagaz de João Carlos Castanha e Zé Adão Barbosa, que indubitavelmente ganhou carga inspirativa em Pedro Almodóvar, é a chance de mergulhamos nestas histórias absurdas e extremamente criativas que nos tocam, fazem rir, pensar e enternecem. Isso, devido ao caráter humano das personagens, que ultrapassa as diferenças culturais, sociais e inclusive pessoais. Quanto à direção de Zé Adão, não visualizei nenhum ponto negativo, nada que pudesse alertar. A montagem possui ritmo, o palco está equilibrado e bem explorado.




Mamãezinha Querida revela mais uma vez não ter papas na língua ao chamar a atenção de Beatriz “Sem Bico Teta de Ovo Frito” para seu gogó e citar uma frase de Luchino Visconti: “- Uma águia voa sozinha, os urubus voam em bando”. Ao que elas respondem: “- Se queres ser uma águia, não ande entre as galinhas!” No último ato, uma vez que as meninas foram aceitas para trabalhar no bordel, Mamãezinha aparece com uma roupa dourada pomposa e o cabelo da presidenta Dilma; fica ótima na posição de Monsieur Loyal, o dono do circo. Canta Viver do Amor em uma cena engraçadíssima, na qual o microfone oscila pra cima e pra baixo e ela repete! As irmãs metralha invadem a plateia, decididas a reabrir as portas do decadente bordel com muito brilho, rímel e classe!





Ficha Técnica

Roteiro - João Carlos castanha e Zé Adão Barbosa
Elenco - Dandara Rangel, Everton Barreto, Glória Crystal, João Carlos Castanha e Lauro Ramalho
Cenografia - Luiz Sentinger
Figurinos - Naray Pereira
Iluminação - Carlos Azevedo
Direção - Zé Adão Barbosa
Realização - CIA. RIDÍCULO DE TEATRO
Duração: 1h10min

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