16/02/2011

Estourando Balões Amarelos com a Brasa do Cigarro




A cenografia de Desvario chegou a meus olhos no formato de uma explosão estrelar azul. A atmosfera frígida-metálica da iluminação e dos figurinos lembra a rigidez estética de Quartett, sofisticado espetáculo de Bob Wilson. Mas, calma, essa é apenas a casca da montagem teatral da excelente diretora Tainah Dadda. Se a estética pode ser comparada a uma obra um tanto quanto fria, densa, moderna; o texto dramático está muito mais para o inverso, para a empolgante valsa de Johan Strauss Danúbio Azul. A comédia anti-”para toda a família” de Tainah é calorosa, tendo explícita inspiração do cineasta Woody Allen, com suas críticas muito pertinentes, ainda que em formato sutil.


Um homem de camiseta e paletó (Leandro Lefa), atormentado por não saber ao certo se está de chegada ou de partida, carrega uma mala vermelha pelo palco. Sua esposa (Patrícia Soso) não é quem vai dar respostas certeiras ou mesmo satisfatórias, aliás, Desvario responde pouca coisa, é muito mais ágil em estimular a pergunta. Já a resposta, esta, fica com o espect-ator. A mulher comprova estar no mesmo estado de incerteza e insegurança que o marido ao não reconhecer o próprio - suposto - amante (Lucas Sampaio), que vem retomar seu lugar como chefe da casa aos berros, chamando a mulher de gatinha. E ela, ainda que estranhando a situação em que está metida, mia como um felino em resposta. Os conflitos são então convidados a entrar e tomar conta de nossas personagens, que arregalam os olhos do público ao duvidarem da própria existência, dando margem à ideia de que são efetivamente personagens manipulados por um roteiro terminado, redondinho.


As discussões verbais entre os três – quem me dera poder dizer triângulo amoroso – são ácidas, implacáveis, homéricas; remetendo a casais tempestuosos como George e Martha na maravilhosa peça de Edward Albee Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? ou à Bill Harford e Alice em De Olhos Bem Fechados ou ainda à Frank e April em Foi Apenas Um Sonho. Mas, de novo, o casal inclina-se muito mais para a comédia, como Annie Hall e Alvy Singer em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen. Desvario é digno de aplauso e reconhecimento ao buscar inspiração no texto do dramaturgo chileno Jorge Díaz, recheado de falas histéricas e irrefreáveis, sendo que a peça nunca deixa de lado a veia artística, a originalidade e o conteúdo. Fiquei muito satisfeito ao ver a escolha inovadora da diretora ao dirigir uma cena de briga entre o casal, separando os atores em dois planos distintos, ficando a mulher em primeiro plano: todos os argumentos enfurecidos seguem beliscões, puxadas de cabelo, estrangulamentos, bofetadas e outros; o detalhe é que nem Patrícia nem Leandro chegam a se encostar um dedo, porém as agressões são muito visíveis e hilárias. Vislumbrei a união da técnica com a emoção, da concentração com a descontração, ou se preferirem, do cisne branco com o cisne negro.







Desvario já começou eletrocutando-me. Entrei no teatro refrigerado com a camiseta tomada por pingos de suor, me senti um ator com vasta movimentação num dia quente, passados 60 minutos de encenação. Porém, claro, sem todo o cansaço e a liberação de energia – e quem sabe endorfina. É justamente essa a sensação que Tainah Dadda causa: choque. Choque térmico, emocional, mental. O enredo não é difícil ou emaranhado, não precisa ser, é justamente o contrário de uma trama noir, repleta de intrigas. É simples, inteligível, cotidiano. E, paradoxalmente, complexo, profundo, hermético. De outra forma, saberíamos exatamente o que a autora queria dizer com seus patinhos de borracha amarelos! Sim, porque eles apareciam a todo o momento, participando até mesmo da foto de encerramento à lá bonecas russas.


A peça blefa com a platéia, brinca de gato e rato, mostra uma pedra chamando de algodão, e a gente acredita! Aí que está o encanto: na ausência de certezas. Ninguém sabe quem é, da onde veio e para onde vai. Ainda se a frustração acabasse aí, porém é só o começo. A crista da onda repousa no fato de o dia ter começado da maneira mais trivial possível, com pouquíssimas perguntas e um banquete morto de respostas: ir ao banco, lavar o cesto de roupas sujas, fazer as compras.


O cenário do espetáculo é carregado de simbologia: um aeroporto apinhado que, quando analisado, é também o recinto comprido e apertado de um avião. Ou mesmo um apartamento, porque o elenco se mostra aconchegado; entretanto basta o termômetro emocional subir, que em seguida caem do teto sacos de ar salva vida, o que imediatamente nos transporta à imagem do avião. Tudo isso vem muito bem a calhar se considerarmos a inspiração no texto de Jorge Díaz: versa sobre este sentimento de força imensurável, a solidão. O que nos dá a “certeza” deste cenário incomum é o familiar sinal de aviso que antecede uma voz feminina pausada e sempre em estado de graça, alertando atrasos e saídas de vôo. Não fosse pouco, uma aeromoça ruiva com gestos robóticos (Joana Vieira) serve de excelente contra-regra, interagindo com seus olhos esbugalhados. A atriz consolida seu talento ao fumar como uma diva, enquanto segura uma haste cheia de balões amarelos. Vai furando um por um a fim de sonorizar as discussões entre as personagens. Belíssima cena!





No último ato as personagens estão entrando em crise, é a ressaca de – subitamente - acordar sem a própria identidade. A suposta solução está na caixa vermelha aberta pela comissária de bordo: uma estranha figura feminina (Elisa Volpato) de vestimentas lustrosas, gargantilha vermelha e comportamento afetado. Cruza o palco com o microfone apertado nas mãos, dando show; diz ser uma cantora lírica (careca) que mais tarde revela-se transexual. E depois desmente. Se o triângulo teve a mais modesta das esperanças de enfim reconstruir suas identidades misteriosamente perdidas, enganaram-se. A cantora, ao invés de desamarrar os nós, aperta-os! Tendo isso em mente, a única liberação de tensão para o público é a gargalhada. E como ela aparece!






O elenco preparou atuações afiadas, convincentes, prontos para navalhar possíveis faltas de engajamento corporal e vocal. Leandro Lefa tem o físico e o rosto perfeitos para o papel de homem sensível e inteligente, recordando o ator Ethan Hawke em Antes do Pôr do Sol. Meu único conselho é trabalhar mais encima da voz, que às vezes fica baixa ou mesmo irritante. Não cheguei a assistir às temporadas em que Ursula Collischonn fazia o papel de Patrícia Soso, mas sou obrigado a elogiar a substituição, que se não tivesse tomado conhecimento, diria que não existiu, pois a atriz está exemplar dentro do vestido azul datado e ao mesmo tempo atemporal, fazendo contraste com o colar escarlate. Destaque para a cena em que ela erra propositalmente o texto, de forma absolutamente orgânica; Patrícia anda escolhendo bem as peças em que atua. Lucas Sampaio aparece fazendo apoios; usa uma camiseta apertada para ressaltar o físico, calças coladas e botinas. É o Johnny Bravo do Cartoon Network escrito, só falta o cabelo loiro e o topete. Mas isso é composição externa, o trabalho de ator de Lucas é extremamente bem feito, o peito inchado da personagem não lembra em nada um estereótipo, sendo inclusive aproveitado.


Não me restam dúvidas de que a montagem aqui analisada vem muitíssimo bem a calhar nestes tempos de frivolidade teatral.


Alienação, alucinação, delírio, demência, desatino, desvairo, insânia, loucura e tresvario.




Ficha Técnica
Elenco: Elisa Volpatto, Leandro Lefa, Lucas Sampaio, Patrícia Soso e Joana Vieira.
Preparação corporal: Moira Stein
Cenografia: Marcos Buffon
Iluminação: Nara Maia
Figurinos: Maiguida
Trilha Sonora: Arthur Barbosa
Programação visual: Ingo Wilges e Lucas Sampaio
Produção executiva: Lucas Sampaio e Luísa Barros
Direção de produção: Lucas Sampaio e Luísa Barros

2 comentários:

  1. Muito boa tua crítica ao Desvarío, concordo plenamente com o que tu diz.
    Só tenho algo a mais para comentar.
    A Patrícia pode até ter feito uma boa atuação, mas o papel é da Ursula.
    Tu ainda terás chance de ver a atuação da Ursula, neste papel, e quem sabe achar tão bom ou melhor.

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  2. Assim espero, Helene !

    Grato por compartilhar teu ponto de vista.

    Forte Abraço.

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