06/02/2011
Água Bebida na Concha da Mão
Uma joaninha pousa, suavemente, na tela do monitor ainda em branco. Mas eu, esta tarde, ainda não escrevi nada.
Para quê? Se por ali já havia pousado o frêmito e o mistério da vida...
Minha intervenção na poesia de Mário Quintana é com o intuito de relatar exatamente o que aconteceu quando comecei a escrever estas percepções, ou melhor, quando comecei a pensar no que escrever. Avistei a joaninha e em seguida, num estalo, avistei a formiguinha do poema de Mário. Quer coisa mais linda do que uma ligação como essa? Sim, porque talvez o universo que conhecemos está em toda sua integridade e vastidão por debaixo dessa associação, está todo dentro da joaninha viva, da formiguinha apressada, das letras sábias. Esse exemplo de despretensão e simplicidade na escrita vale ouro. Acaba fazendo da arte literária uma arte atemporal, acessível, cativante e popular.
Pois acho que é mais ou menos isso que o poeta gaúcho – nascido em 30 de Julho de 1906, leonino – fazia e gostaria que seus leitores fizessem: boas associações direcionadas à felizes reflexões. Uma mulher – e outras mulheres e outros homens, uma equipe, uma família - eu tenho certeza que alcançou esse ideal: Deborah Finocchiaro, uma das atrizes mais corajosas que eu tive a honra de assistir e conhecer. Corajosa porque ela vai (e foi!) atrás dos seus sonhos, chamou o diretor Jessé Oliveira, a artista plástica Zoravia Bettiol, o compositor Chico Ferretti - e tantos outros - assim montando essa lufada de esperança na vida que é Sobre Anjos e Grilos. E por que razão a união de tantos artistas se a obra é de um único poeta? Simples: a obra de Mário Quintana aborda milhares de assuntos pertinentes em formatos deliciosamente impertinentes! Ele não escreve para a burguesia, elite ou favela. Escreve para a Maria de Todo o Dia, pro João Cara de Pão.
“ (...)
Para você, que está com esse jornal na mão...
E de súbito descobre que a única novidade é a poesia
O resto não passa de crônica policial – social – política.
E os jornais sempre proclamam que “a situação é critica”!
Mas eu escrevo é para o João e a Maria,
Que quase sempre estão em situação crítica!
E por isso as minhas palavras são cotidianas como o
[pão nosso de cada dia
E a minha poesia é natural e simples como a água bebida
[na concha da mão.”
Sou tomado por um tipo de “Efeito Mário Quintana” após ler seus versos. São imediatos, chegam aonde precisam chegar sem esforço aparente, arregalam nossos olhos, são ágeis e cativantes, podendo reverter um conceito cristalizado na mente em pouco tempo. Faz daqueles que repudiam poesia, leitores ativos.
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Além de uma poética repleta de imagens escolhida para guiar esse trabalho, o espetáculo é certeiro ao apostar nas coloridas gravuras de Zoravia Bettiol -> http://www.zoraviabettiol.com.br/, as quais possuem um dos traços mais infantis que meus olhos já viram, o que é um presente, pois Zoravia tem a liberdade de uma criança. Pablo Picasso disse que passou a vida inteira para aprender a desenhar como uma criança, imagine?
E se alguém consegue conservar por toda a vida a criança que tem em si, esse alguém será realizado e nunca envelhecerá.
As gravuras inspiradas no universo do poeta são impecavelmente projetadas em uma tela transparente, são explosões de cores dando forma aos poemas, cenário mais do que adequado para um monólogo de teor celebrativo. A atriz transmite essa mensagem das mais escusas formas que possamos imaginar, expressando-se com cada partezinha do corpo, cada músculo, cada articulação. Em determinada cena, é possível enxergar a silhueta e o movimento da água nos dedos oscilantes de Deborah, que opta pelo engajamento e pela fluidez entre verbo e gesto. O Quintana-Menino é visualizado em praticamente todos os momentos de Sobre Anjos e Grilos, como se houvesse uma necessidade por parte do poeta (e da personagem que encarna seus versos) de retornar à forma pueril de pensar e reagir.
Quando a figura magra e cheia de vida de Finocchiaro aparece pela primeira vez, avistamos um vulto branco rodopiando o chão do palco nu. O traje é lindo, iluminado, solto e leve o suficiente para as constantes travessuras que deixam qualquer adulto de espírito velho enlouquecido. O que se ajusta como uma luva quando posto ao lado da encenação: Deborah fala, pula, canta, chuta e berra como uma legítima criança revelando os mistérios da vida e seus próprios mistérios na vida. Sentado no teatro, pensei: “E essa mesma mulher fez uma puta extraordinária na outra peça, Vozes Urbanas! -> http://percebeoteatro.blogspot.com/2010/12/anseio-dos-momentos-mais-saudosos.html” Tendo o espírito da criança, a personagem vai bater na mesma tecla do piano quantas vezes for necessário, e se a tecla quebrar, parte pra outra! Uma delas há de liberar faíscas de verdade através do som. E é nosso papel a combinação harmônica dos sons para então libertarmo-nos das garras pontiagudas desse meio que humilha, reprime, detona.
Dizem que o poeta é produto do meio. Bobagem!
O poeta é um produto contra o meio.
E se um balanço for utilizado como auxílio, perfeito! A sensação é de que a atriz vai ser abraçada pela plateia a qualquer momento, sem dúvida uma dos enquadramentos mais líricos. Com tanto para recitar, nossa estrela precisou do suporte de um microfone hilariamente instalado na sua testa! Essa escolha pode provocar rejeição inicial, mas já digo, é só inicial. Depois que nos acostumamos com a voz da atriz e suas variantes, pouco importa se existe ou não microfone. O que importa é a palavra dita pela boca-mente-corpo-coração.
O roteiro, descobri, partiu das entrevistas de Mário Quintana. Foi essa a fonte principal para que os cataventos começassem a girar. Como eu disse anteriormente, os temas abordados pela caneta de Mário são muitos, indo de religião ao consumismo. Sempre lembrando que não importa se acreditamos ou não em Deus, mas se Deus acredita na gente.
- Que fazia Deus antes da Criação?
- Dormia.
- E depois?
- Continuou a dormir.
- Mas Ele não tem de cuidar do mundo?
- Ele está é sonhando o mundo: está sonhando até nós dois aqui conversando...
- Cruzes! Cala-te!
- Fala mais baixo...
Se Eu Fosse Um Padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
(...)
Porque a poesia purifica a alma...
um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!
O Supremo Castigo
(...) De modo que, se esta civilização desaparecer e seus dispersos e bárbaros sobreviventes tiverem de recomeçar tudo desde o princípio, pensarão eles que Coca-Cola era o nome do nosso Deus!
Depois dessa frase, surge no telão um vulto negro com as curvas do refrigerante mais famoso do mundo e milhares de pessoas ajoelhadas, venerando. A peça leva a plateia à loucura, arrancando muitas gargalhadas.
Outro tema que muito me marcou foi o progresso desenfreado, causador da aceleração cotidiana. Cada passo dado na rua tem de equivaler à um clique virtual: iniciar, enviar, entrar, conectar, compartilhar, publicar, sair, remover, cancelar, OK. É um novo formato de vida que, ao invés de ajustar-se, suga e escraviza o que vê pela frente. Mas é claro, como toda a regra tem sua exceção, toda situação pode ser revertida. É aí que Sobre Anjos e Grilos entra com toda a robustez sensível que o teatro carrega. Vai lá, Mário:
Ah! Os Relógios
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
(...)
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
Preparem-se para uma ligação inusitada: Rubem Fonseca. Ora, e por que não? Já que versei a respeito do progresso descontrolado, deixo aqui um fragmento que resume algumas conseqüências, retirado do inacreditável e corrosivo conto Intestino Grosso: “Estamos matando todos os bichos, nem tatu agüenta, várias raças já foram extintas, um milhão de árvores são derrubadas por dia, daqui a pouco todas as jaguatiricas viraram tapetinho de banheiro, os jacarés do pantanal viraram bolsa e as antas foram comidas nos restaurantes típicos.”
Outro tema que ficou gravado na minha cabeça foi o da evolução humana, sendo genialmente subvertido: ao invés da evolução a partir do macaco, o inverso! A personagem termina corcunda e aos pulos, guinchando. Antes dessa cena, ela fala sobre os grã-finos, indo da criança ingênua para um mulherão de voz grave e ridiculamente sensual: “-Ai, os grã-finos são tão... Ai, tão... São tão... PRIMITIVOS!
Dos Rituais
No primeiro contato com os selvagens, que medo nos dá de infringir os rituais, de violar um tabu! É todo um meticuloso cerimonial, cuja infração eles não nos perdoam. Eu estava falando nos selvagens? Mas com os civilizados é o mesmo. Ou pior até. Quando você estiver metido entre grã-finos, é preciso ter muito, muito cuidado: eles são tão primitivos...
Na poesia de Quintana “as coisas voltam a nos interessar, como se voltássemos a ser o recém-nascido no mundo. E em verdade vos digo: nunca deixamos de o ser”; palavras de Luis Fagundes do Amaral. Aí me pergunto por que nossa sociedade precisa consumir entretenimentos tão bombásticos? Sim, porque se o filme não tiver explosões colossais, milhares de tiros, mocinhos e mocinhas sex simbol, vilões cafajestes e a última cena com um beijo heterossexual; não serve. Será que o motivo é a falta de intensidade na vida das pessoas? A falta de aventura, de amar os simples prazeres da vida? Que, não esquecendo, são simples porque assim os deixamos ser. Acredito que muito possa ser... Temperado com a morte! Como disse o poeta.
O título da peça remete às palavras de Érico Veríssimo e aos poetas mortos. Entretanto a idéia de Quintana como um anjo – ainda mais se católico – é estranha. O poeta era bêbado e sarcástico, praticamente toda sua obra é permeada pela mais fina ironia.
Tratando-se de um monólogo, toda a informação é concentrada em uma única pessoa, então, pro balão não estourar, imagino que seja necessária muita disciplina por detrás do encanto cênico. Claro que a direção não precisa dividir o enfoque, entretanto a ausência de colegas pode agir de forma inibidora ou o contrário, arrogante. O que mais me atrai em monólogos é a autonomia que eles são capazes de promover ao ator, a independência. Sobre Anjos e Grilos foi o espetáculo que batizou a Companhia de Solos & Bem Acompanhados, nascida em 1993. O nome é maravilhoso, porque realmente, tanto nesta peça quanto na excelente Poisé Vizinha -> http://percebeoteatro.blogspot.com/2010/01/oi-ana.html , a protagonista está e não está sozinha, já que invoca a companhia da poesia, da vizinha Ana, do João e da Maria, do jovem professor de inglês.
Ao sair embriagado de letras do Teatro de Câmara Túlio Piva deparei com um senhor na frente do bar Pinacoteca levantando despudoradamente a voz para uma mulher:
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!
A peça atingiu alguma parte do senhor e por ali depositou sua semente. Pois também fui semeado, falta agora desabrochar. Mas isso é comigo. E com vocês!
Simultaneidade
- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.
ficha técnica
textos e poemas - mario quintana
concepção, roteiro e atuação - deborah finocchiaro
direção - deborah Finocchiaro e jessé oliveira
imagens - zoravia bettiol
trilha sonora original - chico ferretti
iluminação - fabrício simões e jessé oliveira
produção - daniela lopes e deborah Finocchiaro
realização - companhia de solos & bem acompanhados
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