24/11/2012

Eu Sou x Narcisismo





O Feio alcança um nível de provocação muito significativo, causa a sensação de que está sendo apresentado no meio da plateia e não diante dela, consolidando-se como uma obra capaz de eletrocutar os sentidos. Cada recurso cênico foi bem utilizado e - em conjunto com as atuações e a direção - formou-se um organismo interdependente, no qual cada órgão contribuiu para a construção de uma atmosfera perturbadora de vida e morte.



Lette (Rossendo Rodrigues) é um engenheiro que acaba de fazer uma importante descoberta: um conector de última geração. O que renderá a ele visibilidade através de uma conferência com estadia paga e outros atrativos. A outra importante descoberta é que o seu assistente, Carman (Maurício Casiraghi), foi o escolhido para apresentar o tal conector. A justificativa de seu chefe (Paulo Roberto Farias) está na última – e dolorosa - descoberta: Lette é feio.



De homem normal, com mulher (Danuta Zaghetto) e emprego, Lette passa a ser um homem tremendamente feio. Chocado com a revelação, ele decide submeter-se a uma cirurgia plástica que modificará todo o seu rosto. De homem feio, Lette passa a ser uma obra-prima. Seu encantamento dura até ele começar a perceber que o seu rosto está sendo produzido em série, o que vai levá-lo a trilhar um caminho profundo e inesperado: quem sou eu?



Uma das características mais marcantes do espetáculo e do texto é o impulso desenfreado de seus personagens. Como se não vivessem em uma sociedade regrada, exibem uma liberdade de expressão sem amortecedores ou censores. Eles nos remetem às figuras de animais. A diretora Mirah Laline encontrou uma linguagem de atuação consistente com esse propósito, uma exacerbação corporal e vocal. Algo que chega a se tornar caricatural, como nas figuras da velha rica com uma língua obscena e seu filho homossexual, sempre chupando um pirulito rosa de maneira afetada. O mérito do elenco está em extrair o melhor desses personagens, recheando-os de um humor ácido ao invés de deixá-los cair no humor rasteiro. Outra característica instigante do espetáculo é a maneira como os personagens se mesclam, se confundem, chegando a praticamente se fundirem. De repente eu não sei mais diferenciar o chefe de Lette do seu cirurgião plástico, descubro a utilização de um recurso teatral arriscado: a interpretação de mais de um personagem por ator, levando em conta a contaminação corporal e vocal que o personagem anterior deixa no personagem presente ou futuro. Cria-se um efeito de estranhamento coerente com a proposta do texto e da encenação, que exploram uma hiper-realidade consideravelmente real!



A escolha por figurinos homogêneos e sóbrios, assim como a simplicidade do cenário, enfatizam o trabalho do ator. A ilusão de realidade é criada e rompida - através da atuação - de acordo com a necessidade, dispensando grandes cenários ou figurinos detalhados. Um bom exemplo é o rosto de Lette após a cirurgia: nada de concreto é modificado no rosto do ator, o que não prejudica em absoluto a nossa imaginação. E esse tipo de recurso é o que faz do teatro uma arte sublime, aguça nossa capacidade de acreditar a partir de situações e soluções ambíguas, não óbvias.



A trilha sonora é um auxílio fundamental na criação de uma atmosfera de perturbação. A música principal, Du Hast – Rammstein (http://www.youtube.com/watch?v=7_J6otJW3sw), apresenta uma força absurda, simbolizando a brutalidade humana em busca da perfeição física. É constituída por fortes batidas que suscitam medo e desorientação, provavelmente o estado interior de muitas pessoas quando se veem numa sociedade doentia e esmagadora. A música – e as próprias imagens do espetáculo – revelam o caminho do ser humano em direção à neurose e a como estamos entranhados nesse padrão de pensamento a ponto de não conseguir a liberdade. É o que vemos nas partituras do espetáculo, explorando a fisicalidade do elenco e sua consequente carga de signos.



Marius Von Mayenburg é um dramaturgo alemão nascido em 1972, escreveu Parasitas (Parasiten) em 1999 e O Feio (Der Häßliche) em 2007. Essas peças dialogam entre si ao darem vida a individuos acima de tudo egoístas. Esse ego doente se manifesta sob diversas formas, como culpa, medo, tristeza, indiferença, ressentimento, inveja ou ciúme. Construir uma comédia a partir desses elementos densos é uma habilidade e uma conquista. Rir do que nos tornamos parece funcionar melhor do que chorar. Para quem quiser mais detalhes à respeito de Parasitas, recomendo ler o que escrevi sobre a montagem da companhia Vai! de teatro no seguinte link: http://percebeoteatro.blogspot.com.br/2010/06/minhoca-de-acucar.html.



A cena em que os sósias de Lette capturam outras pessoas para a alteração de seus rostos carrega impacto e funciona bem com o uso das máscaras idênticas, revelando um rosto de beleza padrão, como o Johnny Bravo, mas ao mesmo tempo assustador e grotesco. Eu simplesmente reduziria o tempo dessa cena ou substituiria movimentações repetitivas por movimentações inovadoras, que nos lançassem outras imagens que não a imagem centralizadora de que o ser humano está sendo absorvido e manipulado por sua busca desenfreada pela “felicidade”. Não ficam dúvidas de que tanto as atuações quanto a direção estão afiadas e alcançam o que propõem. A escolha pela atuação caricatural em alguns personagens e os movimentos mecânicos são os únicos elementos que, às vezes, não funcionam. Causam uma quebra prejudicial ao espetáculo, mas o ritmo acelerado e polifônico se mantém.



O Feio surgiu de uma disciplina do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, o Atelier de Composição I, com a orientação da professora e diretora Patrícia Fagundes. A criação de um espetáculo a partir de uma disciplina acadêmica é uma atitude encorajadora e que tem o potencial para catapultar em um resultado satisfatório e consistente. Existe uma cena que é muito poderosa e incrivelmente simples: o elenco fica grudado na parede em determinadas posições enquanto dá o texto, isso causa uma ampliação do que está sendo dito, uma vivacidade, cores e cheiros. Ao mesmo tempo em que nos conduz a um ambiente de personagens/marionetes chapados.



Mais para o final da peça, Lette descobre que o filho homossexual da velha rica com quem estava se relacionando, também fez a cirurgia plástica. Eles impedem que Lette se jogue de um prédio, atormentado que está com sua inesperada situação, de um grande incêndio ele passa a ser uma chama tímida e inofensiva. Não fica explícito o resultado da face do rapaz, mas podemos acreditar em uma situação muito interessante: o rapaz gay alterou seu rosto para o antigo e original rosto de Lette. Ao se deparar com seu eu verdadeiro, essência, Lette se apaixona e os dois começam a se beijar. Essa cena é maravilhosa, porque nos traz a pergunta que é o cerne da peça: desejo ser quem eu sou ou desejo quem eu sou?





Ficha Técnica

Autor: Marius Von Mayenburg Realização: Ato Cia. Cênica Direção: Mirah Laline Orientação: Patricia Fagundes Elenco: Danuta Zaghetto, Marcelo Mertins, Paulo Roberto Farias e Rossendo Rodrigues Concepção e produção de vídeo: João Gabriel de Queiroz e Mauricio Casiraghi Iluminação: Lucca Simas Figurino: Marina Kerber

Por Guilherme Nervo

01/10/2012

Como A Vida Continua?





(E)terno atinge os olhos e o coração porque trata de uma realidade universalmente conhecida: a perda de um membro da família. Quais são os passos para a superação? O que deve ser feito? Como a vida continua? A vida continua?

Certamente a vida não continua como antes, mas a partir do espetáculo recebemos a visão de que a continuidade da vida, como o próprio nome do espetáculo, é eterna. Assim como a lembrança é eterna. Ainda que a morte seja o grande mistério da vida, a sensação de que nossas lembranças são eternas persiste em qualquer ser humano.



Segurando um terno azul marinho, ela diz:

- Isso aqui era do meu pai.

Ela cheira, amacia e abraça o terno, na tentativa de imaginar como era – como é – o seu pai. Ela é uma criança de seis anos, uma mulher de meia idade, uma adolescente carente, uma velha resignada, é uma personagem dramática, uma atriz jovem, é a própria Tefa Polidoro. Todas são mulheres que esperam, porque a possibilidade de que a figura masculina apareça está sempre habitando o imaginário delas.

Consegui visualizar muitas figuras a partir de uma atriz com um vestido velho e manchado, representativo de uma história do passado que continua repercutindo no presente. Assim como posso ver uma criança cuidando a trilha das formigas, também posso imaginar que são abelhas ou que são animais imaginários, criados pela mente inventiva da criança. Não importa definir a que espécie pertence o animal, a que gênero ou outra categoria, o essencial é deixar-se levar pelo oceano de imagens que vão surgindo para o espectador, enquanto presenciamos uma atriz que acolhe o vazio do palco e dos próprios sentimentos, transformando-os em arte. A magia do teatro está em apoderar-se de acontecimentos íntimos que nos causaram sensações profundas e transpô-los para a linguagem cênica. Como uma homenagem. Uma forma de lidar. Um aprendizado. Uma celebração da vida.



Os dedinhos dos meus pés vazios. Não existe nada aqui, só eu, eu e o vazio.



(E)terno não precisa de cenário porque em primeiro lugar quer nos mergulhar no vazio. Somente daí nos possibilita o contato com a terra, com a grama, os balanços, o ar ou um bolo de aniversário. Só fica definido aquilo que quisermos definir porque a peça te dá uma margem de liberdade na qual a viagem de cada um é única. Penso que há dois momentos em que o espetáculo atinge seu auge: quando ela nos apresenta uma gag antiga muito explorada pelos palhaços clássicos ou mímicos, a gag do casaco, na qual existe a vívida impressão de que outra pessoa entrou em cena através de um dos braços da atriz, que é coberto pelo terno e adquire vida própria, relacionando-se com a personagem. O outro momento é quando ela repete uma linda partitura - trata-se de um mergulhar e subir do chão - enquanto diz uma frase. A frase dita num crescendo é contaminada pelo corpo que vibra até alcançar um estado de presença e perturbação que causam elevado efeito estético e emocional.



Foi um vento que passou Que te trouxe e te levou







Uma peça com apenas uma atriz em cena, praticamente sem texto dramático e com uma temática autobiográfica não é um trabalho simples. Tefa Polidoro e sua equipe realizam essa tarefa arriscada com algo a mais: qualidade! A atriz faz a plateia acreditar que o teatro não perdeu sua essência, que ainda podemos ir ao teatro e sair poetizados. O cerne do espetáculo não está nos efeitos de luz, nas projeções audiovisuais ou em maquinarias de última geração, como muito temos visto ultimamente. (E)terno é grandioso porque é um trabalho verdadeiro, de corpo e alma. Não vemos uma atriz fingindo ou se poupando, muito pelo contrário, vemos uma atriz entregue à cena e crente no seu trabalho. Há detalhes da técnica corporal da atriz que contam positivamente ao espetáculo, como seus pontos fixos, sua resistência, o trabalho de mímica e os giros. Uma vez que a técnica, o talento e a entrega se casam, temos a beleza que é (E)terno.

Ficha Técnica

Direção: Márcio Ramos Orientação de Elenco: Luciane Olendzki Atuação: Tefa Polidoro Trilha: Rafael Salib Concepção de Luz: Rafael Schizzi e Lucca Simas Figurino: Letícia Pinheiro Criação Audiovisual: Generall Produções Operador de Luz e Projeção: Lucca Simas Operador de Som: Marcos Chaves Contra - Regragem: Marcelo Pinheiro

Por Guilherme Nervo

11/07/2012

Teatro Canhão

A minha principal percepção depois de assistir às cenas de William Shakespeare - dos alunos da disciplina de Atuação III do Departamento de Arte Dramática da UFRGS -, é a de que um preparo corporal apurado influencia a voz utilizada em cena. Na maioria das cenas existe um reflexo palpável das aulas de corpo com a professora Suzi Weber, das aulas de atuação com o professor Chico – que elaborou acrobacias e técnicas das artes marciais, como o tai chi chuan – e das aulas de voz com Celina Alcântara, muito focadas – da mesma forma – na exaustão do corpo. O resultado, que analisarei aqui, foi impactante e de qualidade. Entramos no Studio I e imediatamente fomos abordados por figuras que sussurravam nomes e feitiços, tentando nos levar para o centro do “palco”. Foi importante ver os personagens unidos em torno desse ritual que parecia invocar outros seres através do estado de transe. Acredito que seria uma boa forma de finalizar as cenas, com uma nova união entre eles, um ritual de despedida. O cenário se alia com o início a partir do momento que nos causa sinestesia: vários fios formam uma grande teia na qual os objetos (como facas e espingardas) estão pendurados. CENA 1 – MACBETH Macbeth – Áquila Mattos Lady Macbeth – Anandrea Altamirano
A cena começa com Macbeth correndo até o outro extremo do “palco” para vomitar sangue no chão, coberto por uma lona amarela. Macbeth não é inocente, ele deseja possuir o trono, entretanto sua mola propulsora é a sede de Lady Macbeth por sangue. Ela afirma que só não comete o homicídio pela condição de mulher, pois o que não lhe falta é determinação e força, exatamente o que sustenta Macbeth, caso contrário ele desabaria, pois sua essência encontra dificuldade em aceitar a ideia de assassinato. Nem a água mais límpida removeria as manchas de sangue de suas mãos. Áquila consegue passar o espírito perturbado de Macbeth através do corpo que treme e contamina profundamente a voz. A sensação é de que o personagem está cercado por forças ocultas que causam medo e desespero. Lady Macbeth representa essas forças, o que Anandrea captou, desenvolvendo um verdadeiro anjo negro. Mais do que no corpo, seu triunfo está na voz, profundamente contagiante, formadora de ondas de ódio e vingança. A inserção de objetos na última hora pelo professor da disciplina, Chico, foi uma escolha muito feliz. Para mim os objetos já estavam ali durante os ensaios, mesmo que imaginários; tal a destreza dos atores e das atrizes. Macbeth tem uma faca, enquanto Lady Macbeth carrega dois vasos de barro com um líquido vermelho que vai se derramando enquanto ela dá o texto. Fiquei com várias fotografias dessa cena registradas na minha mente, pois os movimentos eram muito precisos e altamente estéticos. O corpo inflava até alcançar ou romper o limite, depois murchava rápido ou lentamente e ia para outra posição. Não fosse a espontaneidade e o carisma da dupla, a cena poderia ter desenvolvido um formato coreográfico rígido. O único elemento que, apesar de causar efeito dramático, rompe com a personalidade firme de Lady Macbeth, são as mãos de Anandrea, que tremiam bastante durante os momentos em que ela erguia os vasos de barro. Ainda que as atuações estejam afiadas e niveladas, Anandrea apresenta uma energia de combustão, um radiancy sem fim.

10/03/2012

O Devaneio e a Aplicação



Nenhuma, não tenho autoridade nenhuma. Nunca me aconteceu nada. Nunca aconteceu nada a nenhum dos nossos amigos. Eu nunca sofri. Nem os meus amigos.

Que se foda o melhor, esse sempre foi o meu lema. É o homem que baixa a cabeça e continua a avançar, contra ventos e marés, que consegue sair vitorioso. Um homem com coragem e aplicação.

Um oceano de molho que nos rodeia por todos os lados e nos sufoca em um volumoso oceano de molho. Mas a culpa é toda nossa. Não somos a vítima, somos a causa.


Cinzas Às Cinzas transpira equilíbrio e harmonia nos primeiros minutos. As luminárias estão no mesmo plano e são idênticas, as cadeiras estão igualmente posicionadas, a mesa está coberta por uma toalha vermelha impecável, e no primeiro plano repousam uma mala e uma lixeira. A casa de campo possui uma simetria perfeita que é acentuada com a chegada do “casal maravilhoso”, infiltrado pela música romântica What a Wonderful World. Não havia melhor escolha do que essa canção, com sua melodia que desliza como mel no tronco, a letra idealizada e a voz emocionante de Louis Armstrong.


A partir do segundo em que o homem (Elielto Rocha) e a mulher (Marcia Berselli) começam a desvelar sua relação, a pele de Cinzas às Cinzas começa a desmanchar. Os sorrisos engessados do casal iniciam um processo de derretimento que deixa clara a defasagem entre o real e o ideal. A realidade dá sua primeira dentada na atmosfera harmoniosa do casal quando a mulher resolve falar do amante. Suas ações correm a favor da fala, ela desorganiza a casa, enquanto o homem recoloca tudo no devido lugar. Ainda que ferido, o orgulho do macho resiste. Mesmo quando a fêmea é explícita ao provocá-lo, vangloriando-se com saudade do tempo em que sua vida sexual era bem sucedida e ativa, com direito a uma fantasia erótica que a enlouquecia: beijar os punhos de seu amante e ter o pescoço envolto por suas mãos, como quem está a ponto de ser estrangulada.


A típica cena do chá inglês é subvertida pelo texto de Harold Pinter. Ao invés de compartilhar assuntos com o maior nível de decoro, ou nem tanto, afinal estamos em 1996; a conversa toma um caráter ácido. Aqui o chá tem efeito inverso: inquieta os ânimos. Devlin (o homem) quer uma descrição física do amante, quer concretude. Rebecca (a mulher) não admite ser chamada de querida, ela não é a querida de Devlin. Somente o amante a chamava de querida. A atriz joga as xícaras na lixeira sem piedade e com precisão, como se aquela ação fosse uma extensão de sua fala.


O amante era um guia turístico ou um grande timoneiro de navio em águas agitadas, era muito respeitado. Ele ia até a plataforma da estação de trem e arrancava os bebês das mães, que gritavam em desespero. Rebecca admite ficar incrivelmente perturbada com o barulho da sirene de polícia, porque no momento em que se afasta dela, se aproxima de qualquer outro. Revela seu lado patológico ao querer inteiramente para ela o barulho da sirene de polícia, tem um gosto pela aflição.


Devlin começa a fazer muitas perguntas, a dar margem ao seu incômodo. Diz que ela se sentiria muito melhor tendo confessado a infidelidade antes, como se ele fosse um padre, alguém posto à prova. O homem ideal é aquele que sai vitorioso. Aquele que não se importuna com realidades frívolas, com vadiagem, ou seja, com assuntos do coração. É o homem que baixa a cabeça e segue que sai vitorioso. Esse é o discurso de Devlin, um discurso machista, reacionário e que glorifica a alienação, a indiferença. Sem falar da hipocrisia, afinal ele está muito bem envolvido em assuntos do coração nessa peça. Essa é a principal ação dramática de Ashes To Ashes: a especulação amorosa.


Rebecca atinge um estado crítico, repete várias vezes a mesma coisa, persiste em esquivar-se das perguntas do marido. É quase como se ela estivesse dissimulando, mas a atuação de Berselli, apesar de trabalhar com a ambigüidade do texto, tende mais para a exploração do estado de alucinação que a mulher apresenta. Rebecca cavou fundo em suas emoções e nos labirintos de sua mente. Aqui, como em praticamente toda a peça, o devaneio da fêmea contrasta com a aplicação do macho, que faz perguntas objetivas ou deseja sair para ir ao cinema.


A reação de Devlin é a de explicar para a mulher que eles moram juntos em uma casa com um jardim lindo e que ela tem uma irmã simpática. Devlin dá um banho de aplicações: elogia a mulher e diz que deveriam começar novamente, esperando uma reação positiva e maravilhada dela. O que, é claro, não acontece. Toda essa determinação masculina tem alicerces frágeis, a ponto de tombar. Então Rebecca retoma sua postura de lucidez, dizendo que não podem recomeçar, porque já começaram, podem é acabar. As cinzas devem ser jogadas às cinzas. Não é mais suportável esperar que elas se reconstituam ou mesmo peguem fogo, afinal, são cinzas! Cinzas de um relacionamento.


A iluminação tem pouca significância, apenas a última cena apresenta um único foco de luz vermelha que banha Rebecca enquanto ela diz a última fala. Talvez um caminho interessante fosse explorar a iluminação através de diferentes ângulos, intensidades e frequências. Levar em consideração o teor subversivo do texto dramático, fazendo com que o ato de iluminar experimente a incerteza e o desespero iminente, características do texto. A impressão é a de que o casal vai se aniquilar a qualquer momento, o que gradualmente acontece, pois suas confissões ativam ciúme, raiva, humilhação e dúvida.


O figurino apresenta roupas elegantes que parecem encobrir a vida medíocre e cheia de tormentos do casal. O vestido branco de Rebecca comunica a tranquilidade que ela sempre quis, característica ameaçada pelo detalhe vermelho do vestido e pelos sapatos vermelhos. Devlin veste um paletó, o que corrobora com sua atitude: formalidade e decoro. Características que o ator construiu com sucesso, tanto ele quanto a atriz fizeram um trabalho digno de aplauso.


O que destoa Cinzas Às Cinzas, com belíssima direção de Luís Fabiano, são os problemas que assombram a relação cênica entre ator e atriz. Havia momentos em que eu não acreditava no que eles falavam e nem em quem eles eram. Por mais que as atuações individuais estejam afiadas, persiste um problema de química entre os dois na minha percepção. Elielto Rocha tem uma intenção vocal muito adequada, o texto se harmoniza com sua voz. Marcia Berselli me atrai tanto em cena quanto Rebecca no texto, foi uma tarefa difícil ler o texto sem pensar na atuação de Marcia, que ficou como uma marca no meu imaginário. Enquanto Devlin tira borbotões de uma maçã, reorganiza a casa retirando objetos da lixeira e barbeia-se, Rebecca chama atenção com suas frequentes saídas de sintonia (executadas com esmero por Berselli), é a tendência que a personagem tem de abandonar-se mergulhando em suas memórias.


A última fala de Rebecca é muito poderosa, ela conta que foi conduzida aos trens com uma senhora, ambas carregando seus bebês, mas o dela começou a chorar e então ela se obrigou a entregar ao homem (o amante de Rebecca?) que pedia o que ela carregava na trouxa. A mulher pergunta o que aconteceu com o bebê de Rebecca, ela responde salientemente nunca ter tido um bebê.


A reação de Devlin no meio dessa revelação é muito adequada e instigante. Ele imita a fantasia erótica que o amante dela costumava fazer, faz menção de estrangular a mulher. E o interessante é que ela parece reproduzir esse ato em sua vida, estrangulando memórias inoportunas, como a perda de seu próprio filho. A luz vermelha que ilumina Rebecca, mancha seu vestido branco como sangue, é o momento em que o detalhe vermelho do vestido escorre pelo corpo da mulher: o parto ocorre. Ela perde o bebê para o mundo.


Eu não tenho nenhum bebê.
Não sei de bebê nenhum.

A Puta e a Santa




Boneca Teresa
possui três pontos de sustentação: o nível de tensão atingido, o jogo das duas atrizes e o texto dramático do porto-alegrense Carlos Carvalho. São esses os elementos que seguram e preenchem adequadamente os 50 minutos da peça teatral.


Sapatos altos, meia arrastão, vestido vermelho decotado, maquiagem, rabo de cavalo e linguajar de baixo escalão: essa é Valdinete, a prostituta que inicia a peça sentada em uma cadeira de delegacia, semi-iluminada por uma luz violeta. Ela diz que vai narrar o ocorrido. A peça é um grande flashback, no qual as cenas da delegacia aparecem fragmentadas, sempre que a luz geral diminui e luz violeta surge.


Valdinete escuta um barulho e vai até o fundo do palco para verificá-lo, alegando que está armada e não hesitará em usar sua navalha. Sapatos, saia marrom, blusa bege com babados, bolsa, cabelo amarrado e conduta moral: quem aparece é Gelsi, a mulher direita que só veio até essa casa a pedido do Seu Rubão, para ouvir alguns discos. No início Valdinete ameaça a mulher com a navalha, depois elas conseguem travar um diálogo com o mínimo de sossego e compreensão. São donas de temperamentos muito diferentes, tendo apenas um traço em comum: a perda dos filhos. Enquanto Val abandonou o filho no hospital, Gelsi fez um aborto. No meio da peça elas encontram um baú com bonecas sem cabeça, provavelmente simbolizando a perda dos filhos.







As personagens passam a peça inteira trancafiadas dentro de uma casa. Segundo Gelsi, seu Rubão foi comprar bebida. Mas para Valdinete quem foi comprar bebida foi o seu Macedo. Então elas começam a achar que foram enganadas, principalmente a prostituta, que tenta sair arrombando as portas, mas falha. Enquanto isso, Gelsi dissimula estar muito bem e apenas estar esperando, mas logo uma dor começa a crescer dentro dela, ficando cada vez mais pungente e insuportável. Os diálogos são rápidos e com boa comicidade, fazem surgir o interesse e a concentração, mas isso também é merito da atuação.


Os ensaios de Boneca Teresa iniciaram em fevereiro de 2011, o que significa que o elenco teve pouco mais de um mês para trabalhar na construção das personagens, no jogo e nos elementos da Análise Ativa, segundo Stanislavski. Mesmo que as atrizes já tivessem algum esboço dos papéis, o resultado é muito satisfatório, considerando o curto tempo disponível. Jordana de Moraes (Gelsi) se apresenta exacerbada, porém segura. Ela exagera na atuação, mas nunca deixa a peteca cair, sempre consegue o que pretende, acreditamos na mulher frágil desesperada pela manutenção de sua moral e bons costumes. Ela tem um texto e uma atuação mais cômicos do que Larissa Gonzalez (Valdinete), que precisa trabalhar um pouco mais em sua personagem para roubar a cena como faz Jordana. Talvez explorando o lado mais grotesco e ridículo da prostituta, a atriz colha frutos mais maduros






“Boneca Teresa pra ti!” é uma expressão de indiferença perante o outro, um tipo de saudação ao contrário. É o que o Macedo ou Rubão fez com Valdinete ou Gelsi, talvez nem elas sejam duas, mas apenas dois lados da mesma moeda.


Ficha Técnica

Texto: Carlos Carvalho
Direção: Jordana de Moraes e Larissa Gonzalez
Assistência de Direção: Dionatan Rosa e Cicero Melo
Elenco: Jordana de Moraes e Larissa Gonzalez
Cenário: Nani Farias e Andressa Venturini
Sonoplastia: Cicero Melo
Figurino e Maquiagem: Iuri Lopes e Cicero Melo
Iluminação: Dionatan Rosa
Produção: O grupo