26/04/2010

Vai, Peteca



Pesquisei e descobri: “Um acessório sensual muito usado na década de 20 foi a cinta-liga. Dançarinas exibiam suas cintas-ligas por baixo das saias de franjas, enquanto se sacudiam ao som frenético das jazz-bands. Ainda nos anos 30, era o único acessório disponível para prender as meias das mulheres, que só tiveram as meias-calças à sua disposição a partir da década de 40, com a invenção do náilon em 1935.”

A meia-calça sempre teve o poder de destacar a perna feminina. A cinta-liga é provavelmente o auge desse poder sedutivo. Independente do desejo sexual, tais acessórios acendem (ligam) uma luzinha, por vezes uma tocha. O nariz vermelho fica encarregado de apagar (desligar) essa luz, sempre podendo acendê-la de novo, quando bem entender. Traz consigo ingenuidade e risco, é vermelho porque quer chamar atenção, que alertar: “Pare! Perigo a frente”. Entretanto é humano o bastante para, além de causar estranhamento, produzir afeto e desejar o envolvimento. "Cinta-Liga/Desliga" trabalha com a duplicidade do clown.

O trio de palhaças em cena contagia: Aline, Grasi e Odelta; o chocalho, a corneta e o triângulo. O foco passa de nariz em nariz, cada uma tem seu momento especial para explorar a comicidade do corpo e da voz, todas com o mesmo objetivo em comum: encontrar um pretendente. Aí começa a corrida, não pelo ouro, mas pela beleza. Passando por sessões de depilação com uma navalha gigante ou fita adesiva. Nesse ponto a lógica absurda do palhaço é revelada e ganha impulso pela competição.

A interação com o público (principalmente o masculino) revela a relação do palhaço com o sexo: é despudorada. Segue-se os instintos ao invés de questioná-los, o ato de hesitar é raro. Depois de arrumadas ( passa-se o batom em tudo, menos na boca = nonsense), escolhem um pretendente na plateia e o guiam até o palco, em busca do sapato perfeito (Cinderela) que definirá a palhaça perfeita para o pretendente. Não existindo perfeição no universo do clown, é claro que nenhum dos três sapatos encaixou.

Grasi não está no centro do palco por acaso, é a ladra de foco. Consegue sobressair-se sendo carismática e causando gargalhadas com sua palhaça de voz grave. Já que toquei em voz, prossigo: o trabalho vocal não acompanhava o excelente trabalho corporal do trio. A voz histérica, típica do palhacinho, é muito desagradável, ou mesmo aquele tom de voz quase morto, que é mais um sussurro que outra coisa.

O espetáculo em processo de montagem, por vezes, desliza, mas já consegue decolar, indubitavelmente. Que o Núcleo Trompas de Falópio continue gestando/parindo/espalhando bons trabalhos! Não deixem a peteca cair!!

Ficha Técnica
Atuação: Aline Tanãa Tavares, Grasiela Muller e Odelta Simonetti
Direção: Luciane Olendzki
Figurinos e acessórios: Patrícia Preiss
Iluminação: Vinícius Petry
Fotografia e design gráfico: Douglas Trancoso e Gio Mazzochi
Assessoria de imprensa: Anahi Fros
Produção: Trompas de Falópio
Patrocínio: Ministério da Cultura - Fundação Nacional de Artes/ Fundação Athos Bulcão - Prêmio Funarte Carequinha de Estímulo ao Circo 2009.
Apoio: Sala de Ensaio Centro Cultural e Médicos do Sorriso.

20/04/2010

Pompa de Porca



"Mães & Sogras"
ainda me soa como um título banal. Demorei para decidir se investiria ou não no ingresso da peça de Marcelo Adams. Pois investi, e valeu. Por mais que não consiga acompanhar do início ao fim, sou apaixonado por textos astuciosos – com longas falas e muita informação – como este, de Leando Sarmatz. É o tipo de texto que, com a dramatização de Margarida Leoni Peixoto e Naiara Harry, nos deixa com a sensação de tontura, provendo barris de informação que vão se entralaçando até formar o produto final: a frustração materna e a loucura.

Retratando as situações trágicas e cômicas da classe média judaica no Brasil, Adams dirige a peça sendo delicado e suficientemente cuidadoso, sabendo utilizar artifícios, como a barra de metal na composição do ônibus lotado. Sua esposa, Margarida, encarna Bella Molodóvski, a figura típica da mãe judia: superprotetora e rancorosa. Não suporta ser rejeitada pela nora (Carla Gasperin), principalmente quando esta “rouba” o afeto do filho Roberto e, pior ainda, não é judia. O preconceito também é uma característica muito forte da classe média retratada, esses imigrantes da Europa Oriental que fugiam em busca do desejo de qualquer ser humano: uma vida melhor.

Amicíssimas há anos, Bella e Anita (Naiara Harry) revelam-se perplexas – mais que isso, horrorizadas – com a situação da juventude e com os novos valores. Elas fazem questão de exibir a preocupação com muitos exageros e sempre desviando para fofocas mesquinhas, proporcionando uma atmosfera burlesca e satírica. Especulam até mesmo o presunto gordo comprado por um viúvo no supermercado! Anita tem a aparência de mulher mais cansada do que a amiga, a maquiagem e a voz delineiam isso muito bem. O cenário fixo é o mesmo, inclusive me intrigava, era um paredão de fundo com radiografias gigantescas expondo partes do esqueleto humano, imaginei que isso tivesse alguma ligação com as centenas de doenças cantadas na primeira canção: “A Gente Se Conhece Há Tantos Anos!”. Já o cenário móvel vai de sala de estar até supermercado.

As gargalhadas do público minguado custaram a vir, acredito que o ponto de partida foi a cena do chá: Bella e Anita, as amigas avarentas e desconfiadas, devoram bolachinhas e bebem chá ao passo que, empanturradas, prosseguem com a monotonia de sua conversa. O triunfo do humor é o tempo. As gargalhadas só vieram com a eloquência do silêncio das madames, nas pausas do diálogo. São momentos em que nos preocupamos com o que vai ser falado a seguir ou simplesmente refletimos a respeito do assunto anterior. O modo como as duas comem e falam dos outros, revelam duas porcas em potencial. É ridículo. É ótimo.

O derramamento sentimental de Bella Molodóvski é um dos pilares de “Mães & Sogras”. Martiriza-se por ter sido trocada pela nora e sente-se mal agradecida pelo filho. Ela, que tanto sacrificou-se pelo aconchego do filho, agora não recebe sequer uma carta, uma vez que Roberto e sua mulher (grávida) mudaram-se para os Estados Unidos há quatro anos atrás. Acontece que Bella não admite pra si mesma que a reação do filho repousa encima da ação dela, já que foi categórica ao dizer que não queria ver de perto a filha de uma mãe gói (sua nora), menos ainda a própria gói. A ausência do filho Roberto formou uma mulher dissimulada e muito fragilizada por dentro. Tanto que, no último ato, Bella enlouqueçe tornando-se esquizofrênica. Nesse ponto, a linha entre o que é trágico e o que é cômico é delgada.

Ficha Técnica
Texto: Leandro Sarmatz
Direção: Marcelo Adams
Elenco: Margarida Leoni Peixoto, Naiara Harry, Carla Gasperin, Claudia Lewis e Rafael Ferrari
Cenografia: Rodrigo Lopes
Figurinos: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochôa
Trilha sonora: Marcelo Adams e Rafael Ferrari
Produção: Cia. de Teatro ao Quadrado e Rodrigo Ruiz
Coreografias: Carlota Albuquerque
Fotos: Júlio Appel
Criação gráfica: Dídi Jucá
Bilheteria: Renata Savaris
Sonoplastia: Rodrigo Ruiz
Divulgação: Bebê Baumgarten
Financiamento: Fumproarte
Patrocínio: Banrisul
Realização: Cia. de Teatro ao Quadrado

02/04/2010

Alice de Lã



“Alice” não quer contar uma história com início, meio e fim. Não quer ter moral da história. A Cia. Espaço em Branco inspira-se na Alice de Lewis Carroll, mas não pretende contar uma fábula. Falando em pretensão, nos minutos iniciais de espetáculo, projetei o desenvolvimento que viria: uma montagem experimental e pretensiosa. Sim, carregada de poesia, mas ainda acorrentada ao esboço. Pois digo que me precipitei, “Alice” não pretende tanto. É simplesmente inovadora. Diverte fazendo refletir, toca interagindo.

Sissi Venturin cria um belo mosaico ao realçar (a dedo) fragmentos da obra original, o que geralmente funciona e é legítimo, proporcionando um espaço de liberdade muito amplo. Parte da plateia é formada pelos convidados da festa do chá, os quais celebram o desaniversário de cada um. Entretanto não é chá que Alice serve aos convidados, é seu próprio coração. Coração este (cheio de nuances), posto no liquidificador junto com açúcar, já que sua essência é amarga. Partindo para outro exemplo da liberdade criativa sendo usada de maneira adequada, recordo da cena em que Alice rompe a barriga soltando um grito estridente: jorram marshmallows em forma de coração, e ela, paralisada sobre o palco (que nem é palco, uma vez que há nivelamento entre atriz e plateia), diz apenas: “Coma-me”. Trata-se da celebração do corpo e do sangue como tentativa de unificação, aliás, são promovidas várias tentativas de união atriz-plateia. Outra que me vem à mente é a do poder ofertado ao público de libertar Alice de suas amarras, pois ela enovela-se com lã vermelha já no início do espetáculo.

Inclusive, a lã apresenta-se literalmente como fio condutor da “narrativa”, carregando a simbologia do emaranhamento em si mesmo. Ao adormecer, Alice cai na toca do coelho branco - seu inconsciente. Ali contempla um mundo maravilhoso e desconhecido, onde sente-se enrolada à mercê de tanto absurdo. Então surge o despreparo emocional, levando-a a desejar o retorno ao consciente - sua casa.
Sissi Venturin aventura-se ao interpretar os personagens principais, acertando em cheio na pantomima da lagarta fumante e na composição da rainha de Copas. No entanto, não foram raras as vezes em que me incomodei com a estridência do registro vocal da atriz (que também é a diretora). A voz afinada é um requisito para qualquer cantor, assim como a voz trabalhada e agradável de se ouvir deveria ser um requisito para qualquer ator. Fica a dúvida, pela excelência do trabalho, se a estridência é proposital ou não. De um modo ou de outro, o desconforto é recorrente.

“Alice” me levou à reflexão. O autoconhecimento, o olhar-se no espelho, tem suas intempéries. Quando abrupto, causa rejeição, sente-se vontade de regurgitá-lo. É justamente isso que ocorre à Alice quando mergulha em seu inconsciente e se depara com ela mesma, sendo a primeira reação o vômito e o mal estar. Amei a imagem derradeira do espetáculo: uma vez reunidas as lãs dos pratos dos convidados no vestido da Rainha de Copas, ela sai de cena levando consigo o fio condutor da “narrativa”. Afinal, todos os caminhos pertencem à rainha.

Ficha Técnica
Direção e Atuação: Sissi Venturin
Iluminação: João de Ricardo
Operação de video e áudio: Leonardo Remor
Direção e Arte dos vídeos: Sissi Venturin e Leonardo Remor
Fotografia e Montagem dos Vídeos: Tiago Coelho
Finalização de vídeo e áudio: Marcos Lopes
Ilustração e Design Gráfico: Talita Hoffmann
Colaboração criativa, afetiva e intuitiva:
Marina Mendo, Leonardo Machado e João de Ricardo.