29/01/2011

Profundo Ou Pro Fundo?




Não há como dizer que O Urso se enquadra na categoria de uma hilariante crítica ao comportamento de homens e mulheres. Não existem surpresas na adaptação do enredo, que, inclusive, é previsível. O Urso de Deborah Finocchiaro inicia com uma imagem barroca: a atriz Elaine Regina está sozinha no palco, recostada no divã negro em pose sensual, toda envolta por um véu escuro e um vestido levemente armado, transparente a partir da metade das coxas. O que é, no mínimo, estranho. Desde quando uma viúva que faz voto de fidelidade eterna deixa as pernas de fora? É como se a direção almejasse adiantar alguma coisa para nós. Alguma escolha estética que nada tem de clássica. E o fez bem feito. A mulher em questão – alta, pescoço comprido e cabelo muito curto – é o eu/fragmento/lado exaltado de Popova. Sim, porque na adaptação da diretora a protagonista é vivida por nada mais nada menos do que três atrizes! E três atrizes de calibre, sem dúvida. Tal escolha resultou em uma personagem inevitavelmente rica em sua multiplicidade conflituosa, contradizendo-se a todo o momento, o que pode ser verificado em Regina com sua personalidade exaltada, que mais tarde entra em conflito com as atitudes reveladoras da forma masculina de pensar e reagir. Como quando desafia o Credor – homem vivido por Elison Couto, ganhador do Prêmio Açorianos de Melhor Ator, o qual vem reivindicar uma velha dívida (de aveia!) deixada pelo esposo de Popova – mandando-o embora de sua casa com bastante calma, explicando a situação. É só depois que vem a veemência, a irritação e o descontrole cobertos por energia feminina.






Após a morte do marido, Popova trancafiou-se em sua casa prometendo castidade até surgirem suas primeiras rugas e seu rosto murchar, como flor esquecida pela água da chuva. Quando a iluminação de Fabrício Simões desoculta a viúva, ela está atirada no divã em uma lânguida, sofrível lamentação pela morte do homem. Desliza pela sala de estar com a leveza de uma bailarina, agarra o retrato do esposo e põe-se a chorar, sendo categórica ao dirigir-se ao mordomo (Sandra Alencar): “-Não recebo mais visitas! Esqueceu?”. O mordomo Luká e a direção de Deborah são os elementos que fazem valer à pena O Urso. Sandra Alencar está deliciosamente irreconhecível embaixo da corcunda e da forte expressão facial do velho mordomo. Não é por acaso que ele rouba as melhores – dentre poucas – cenas engraçadas. Isso porque Sandra tomou para si a linguagem do palhaço augusto (ingênuo, figura oprimida) e do mímico com aptidão. Meus parabéns!







O caso é muito diferente quando analisadas as atuações de Elaine Regina e Simone Telechi – indicada ao Prêmio Açorianos de Melhor Atriz -, que são propositalmente afetadas. O que, de partida, cativa, faz rir. Lembra Almodóvar com seu Abraços Partidos. Mas depois... Essa escolha é sufocada. E assim também é o percurso do humor. Tratando-se de uma comédia, o humor é a principal coluna de sustentação, é a base, o âmago de toda a vitória. Por isso deve se renovar constantemente, manifestar-se com fluidez e na medida certa, assim podendo alcançar um nível de irreverência desejado por todo artista que se preze. A veia cômica de O Urso nasce promissora, entretanto desenvolve-se de forma paupérrima, resultando em um humor rasteiro e caricatural. São tantas piadas e referências repetidas que mesmo a casa estando cheia, acaba não rindo. No geral, o público demonstra ter gostado muito de tudo o que viu, mas os momentos apelativos não podem ser contrariados. Um bom exemplo são as insistentes piadas do Credor, envolvendo a ridicularização feminina e os estereótipos da guerra dos sexos. Sátiras não precisam ser rasas, pode-se satirizar com inteligência também.






É notável a ousadia em montar uma comédia de costumes clássica - do russo Anton Tchekhov – de forma não realista. Há diversos pontos altos, destacando aqueles em que a iluminação é densa e colorida, assim causando uma atmosfera ritualística cujo elenco demonstra sincronia perfeita ao concentrar suas emoções no movimento, ao permitir que o corpo descondicionado esteja livre para dizer o que bem entender. Com, obviamente, uma fina e invisível linha guiadora, tecida por Deborah ao dirigir impecavelmente essa peça, ganhadora do Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo em 2003, ano em que o Grupo dos Cinco surgiu. Estes pontos positivos, todavia, são ofuscados por uma avalanche (não em quantidade, mas em qualidade) de pontos baixos. O estereótipo da mulher-menina dissimulada, de voz agudíssima e trejeitos infantis é demasiado cansativo. Difícil não levar a sério, abstrair o temperamento afetado e ininterrupto das atrizes, encontrando o auge da afetação em Simone Telechi, a posição intermediária em Elaine Regina e a exceção em Sandra Alencar, que pouco aparece como Popova, sendo a mais sutil das três facetas, de estaura baixa, capelos compridos e ondulados. O corpo das atrizes encaixa-se como uma luva nos papéis/personas que desempenham!






No fim, Popova acaba se apaixonando pelo antes repugnante Credor, sendo comparado com a figura do urso: grande, forte, difícil de contrariar e resistente. Pouco antes da metade da peça ele já confessa seu sentimento de paixão para a plateia, e não é a primeira vez que se dirige a ela, são várias as perguntas e constatações direcionadas ao espectador. Mas antes da protagonista cair em seus braços, ela dá um show de meninice. Fazendo questão de duelar com o urso, apenas que... Bom, ela não sabe usar as armas, então será que ele poderá ensinar? Diz isso lançando um olhar de fêmea fatal irresistível para qualquer urso, até mesmo os mais dóceis. Popova mascara seus desejos, mas acaba se entregando. Diferente de mim, que não achei brecha para me entregar à peça. Com a exceção de alguns momentos.

Ficha Técnica

texto - anton tchekov
elenco - elaine regina, elison couto, sandra alencar e simone telecchi
direção - deborah finocchiaro
iluminação - fabrício simões
concepção e montagem de trilha sonora - edinho espíndola e marcelo figueiredo
produção e realização - patrícia soso e grupo dos cinco
assessoria de imprensa - sandra alencar

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