31/05/2010

Pícaro Malicioso



O quinto Palco Giratório de Porto Alegre trouxe à capital um dos mais esperados espetáculos: Till, a Saga de um Herói Torto. Não seria então o caso de um anti-herói? Till Eulenspiegel é feio e quer, antes de tudo, se dar bem. Não tem o espírito altruísta ou o charme próprios de um herói.

A peça ocorre em uma Alemanha medieval empobrecida e maltratada. A montagem do Grupo Galpão se mostrou bastante eficiente na adaptação de seu cenário no mezanino da Usina do Gasômetro (todos os cantinhos serviram de assento ou escoro), uma vez que a previsão do tempo era de chuva e seria impossível realizá-la no Parque Farroupilha, o local pré-estabelecido. O palco sustentado por pilares tinha uma posição superior à platéia, com um pano grosso de aparência encardida no fundo, uma forma circular luminosa que surgia por meio de projeção (representando as variações do sol e da lua), algumas tochas e vários arbustos de papel que serviam perfeitamente para vegetação. O jogo de luzes foi excepcional, proporcionando cor e vida a um teatro de rua que, devo dizer, já se garantia com o figurino esfarrapado - muito criativo – e a maquiagem pesada.

O elemento prejudicado foi a voz, que amplificada pelos microfones, ressoou com muito eco e de forma levemente artificial. Haja apuração dos ouvidos e concentração para não se perder na narrativa. O grupo mineiro já completa vinte e cinco anos de estrada ininterrupta, adquirindo uma linguagem riquíssima devido aos mais de oito diretores convidados pelos quais o grupo passou nesse percurso. Não tinha como ser diferente, o Galpão tronou-se referência teatral brasileira.

A música é um aspecto muito recorrente em Till, seja em forma de canto, trilha ou efeito sonoro. Mesmo quando o músico não está em cena, podemos enxergar a sombra de um dos atores concentrado no piano ou no tambor. A trilha e os efeitos sonoros, quando produzidos ao vivo, conseguem ser de fato uma extensão da ação cênica, dá-se o encaixe. Destaque para as festas do povoado e para a cena final, na qual todas as personagens reúnem-se para dançar, ao passo que cada uma tem seu instrumento musical (indo do trompete à meia-lua). É nessa comemoração em que o popular abraça o erudito.

A mãe de Till é uma senhora obesa e esgotada, principalmente pelo período de gestação no qual teve que carregar o filho durante cinco anos. Nem mesmo com a ajuda de um anão escafandrista o filho aceita sair do ventre materno, pior, o anão acaba caindo dentro da barriga da mãe, que fica desesperada com a idéia de agora ter que parir dois! A raiz do sorriso, da gargalhada ou das lágrimas derivadas dessa cena, estão no seu absurdo grotesco. Já a realidade cômica, está em sua apurada produção: embaixo da cama de madeira na qual a mãe está deitada aos berros, há um estratégico alçapão, de onde os atores podem entrar e sair à vontade, causando enorme impacto ilusório.

Alguns momentos da adaptação do texto do dramaturgo Luis Alberto de Abreu deixaram a desejar, visto que os personagens eram também narradores, falando de si na terceira pessoa, e assim desconstruindo a magia por eles muito bem construída. O diabo tem um figurino que exemplifica a engenhosidade criativa: é todo formado por gravatas coloridas, sendo que uma (de trás) é mais longa que as outras, formando um rabo; usa sapatos fabricados com osso de boi ou touro e a língua avermelhada (não posso me esquecer dos chifres que acendiam e apagavam!). Na Idade Média não existiam gravatas, então é claro que estamos diante de uma sátira genuína ao homem contemporâneo. Esse mesmo diabo saía do Inferno (por um dos alçapões) com estardalhaço (gelo seco) e vaidade , até que apostou com Deus que se tirasse do homem algumas qualidades, ele cairia em perdição. Ao aceitar o desafio, Deus traz ao mundo nosso protagonista: Till, que mesmo com a consciência (personificada por uma das atrizes) mais tarde roubada, consegue ser um pícaro malicioso e inclusive recuperá-la.

Havia também um envolvente enredo secundário, o qual contava a história de três cegos andarilhos atados por uma corda, que buscavam o caminho para Jerusalém. Sem dúvida são um dos pontos altos da peça, tanto no que diz respeito à comédia quanto nas relações humanas. Dentro desse trio de peregrinos, surgem liderança, rebeldia, furto e dependência; ou seja, não importa o tempo e nem o espaço em que nos encontramos inseridos (e nem a visão!), as relações humanas surgem, repetem-se, assemelham-se.

FICHA TÉCNICA
Antonio Edson (Borromeu / Povo / Anão)
Arildo de Barros (Parteira / Juiz / Camponês / Carrasco / Padre / Miserável)
Beto Franco (Parteira / Português / Padre / Camponês / Miserável)
Chico Pelúcio (Demônio / Camponês / Voz do Soldado)
Eduardo Moreira (Doroteu / Povo)
Inês Peixoto ou Paulo André (Till)
Lydia Del Picchia (Parteira / Consciência / Cozinheira / Menino)
Simone Ordones (Alceu / Povo)
Teuda Bara (Mãe / Miserável)
Direção: Júlio Maciel
Texto: Luís Alberto de Abreu
Cenografia e Figurino: Márcio Medina
Direção musical - arranjos, adaptações e composições: Ernani Maletta
Preparação corporal para cena: Joaquim Elias
Iluminação: Alexandre Galvão, Wladimir Medeiros
Caracterização: Mona Magalhães
Adereços: Luiza Horta, Marney Heitmann, Raimundo Bento
Sonorização: Alexandre Galvão
Cenotécnica e contra-regragem: Helvécio Izabel
Assistente de figurino: Paulo André
Assistentes de cenografia: Poliana Espírito Santo, Amanda Gomes
Preparação vocal: Babaya
Técnica de Pilates: Waneska Carvalho
Construção do palco: Tecnometal
Ajudante de cenotécnica: Nilson Santos
Costureiras: Taires Scatolin, Idaléia Dias
Fotos: Guto Muniz / Casa da Foto
Projeto gráfico: Lápis Raro
Consultoria de planejamento: Romulo Avelar
Assessoria de planejamento: Ana Amélia Arantes
Assessoria de comunicação: Paula Senna
Estagiários de comunicação: Ana Alyce Ly e João Luis Santos
Consultoria de patrocínio: Mauro Maya
Assistente de produção: Anna Paula Paiva
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Patrocínio: Petrobras

24/05/2010

A Rosa e a Bosta

E assim começa "A Obscena Senhora D.", da escritora brasileira Hilda Hilst: Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. [...]



Estas palavras foram vociferadas em tom zombeteiro pela atriz Suzan Damasceno, que de forma pausada e lenta (no teatro, Stanislavsky chama de pausa psicológica), apresenta-nos a viúva sexagenária Hillé. O precedente da viuvez é a perda do companheiro. Nesse caso, Hillé não perdeu apenas o estimado marido Ehud, perdeu o chão. Ehud era o ponto de contato que Hillé tinha para com a sistematização cotidiana, sempre pedindo-lhe um café ou uma trepada. Uma vez que os conceitos são desmanchados, faz-se necessário uma empreitada em direção à busca do sentido das coisas. Com o sentimento de abandono, a personagem joga-se ao vão da escada e mergulha em profunda loucura, no entanto, é justamente aí que consegue emergir em direção a momentos de intensa lucidez.

Os questionamentos começam a explodir no copo débil de Hillé, levando-a a um discurso ardente no qual ninguém escapa de sua língua feroz, que denuncia e interroga toda e qualquer convenção social, sendo que o alvo principal é Deus. Entre as corporificações divinas, destaco duas: uma gigantesca tampinha prateada e um menino porco. Hillé é taxada de obscena por sua irreverência em face aos costumes, que podem ser comparados a roupas. Diante disso, ela prefere estar pelada. E quem não gostar ou escadalizar-se, ela urra em cima sem o mínimo pudor. Situação vista no embate com seus prosaicos vizinhos, sempre tentando resgatá-la para a realidade deles. Segundo a mente revolucionária da velha senhora, o cetim não distingue a madame do mendigo, pois ambos possuem o fétido buraco: o cu, esse demolidor de vaidades.

A indefinição do tempo e do espaço é refletida no cenário, que apesar de ser sóbrio e taciturno, transborda de símbolos: a terra que cobre o chão está ali para lembrar ao ser humano sua condição de bicho, o seu lugar; a palha representa a fragilidade e o aquário com peixes de papel pardo revela-se como o único elemento de cuidado e possível afeto para com o outro. Hillé não quer peixes coloridos porque já não suporta o brilho mentiroso, a casca. Encontra-se em tal estado que só a essência lhe faz algum sentido, por isso a crueza estética do espetáculo. Não só por isso, mas também porque a palavra é fundamental. O que é deixado bem claro, uma vez que a atriz passa praticamente a dramatização toda sentada em uma cadeira, em contínua narração.

Suzan acerta ao utilizar da imobilidade física, um método de composição da personagem. Este "monólogo do silêncio" objetiva alcançar um estado de sensibilidade, no qual todas as percepções corporais e mentais sejam atiçadas. Há que se desapegar de tudo (sair do lugar comum), focar no horizonte para adentrar em um estado de vacuidade e aos poucos iniciar um ponto de partida que a conduzirá na construção da obscena senhora d., esta bufona escatológica. D de derrelição, desamparo ou abandono; tanto o físico quanto o divino.

É importante ressaltar as variações encontradas por Damasceno em sua montagem paulista, tornando cada personagem único, com presença e vivacidade, desde a voz grave de Ehud até as vozes com sotaque caipira dos vizinhos intrometidos. A lâmpada muito próxima da cabeça da atriz representa a tempestade luminosa de ideias e conceitos em constante questionamento. Apesar de uma mulher soturna estar sentada naquela cadeira, trata-se de uma mulher soturna iluminada. Mas nem a luz - quem dera a morte - foge de seu questionamento baseado no escárnio.

Ficha Técnica
Texto: Hilda Hilst
Concepção: Suzan Damasceno
Adaptação: Germano Melo e Suzan Damasceno
Direção: Rosi Campos e Donizete Mazonas
Elenco: Suzan Damasceno (Discípula de Antunes Filho)
Cenografia e Figurino: Anne Cerutti
Iluminação: Pedro Brandi
Duração: 55 min

03/05/2010

Pesos e Medidas: Inabalável Mundo Velho

Por Andrei Moura

Uma vez que ninguém pode sem crime, espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, [os colonizadores] consideram como princípio que o colonizado não é um semelhante do homem... Nada será poupado para liquidar-lhes as tradições, substituir-lhes as línguas, para destruir sua cultura sem lhes dar a nossa... se ele resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, se degrada, não é mais um homem; e o medo e a vergonha fissuram seu caráter, desintegrando sua pessoa.

[SARTRE. Jean-Paul. in prefácio à Franz Fanon: Les damnés de la terre.]



A Liberdade sempre foi um tema que fascinou, instigou, e despertou o interesse de filósofos, intelectuais e artistas. Para os gregos, os rumos humanos estavam subjugados às Moiras – as três sinistras irmãs que teciam os destinos dos deuses e dos mortais –; mais tarde, para os judeus, e posteriormente para os cristãos, a vida dos homens era comandada pela providência divina, que vigiava e punia; para o filósofo Jean-Paul Sartre, estamos condenados a ser livres; e para a poeta Cecília Meireles, LIBERDADE é palavra que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. O motivo de tão abundante ocorrência em diversas áreas de conhecimento se deve exatamente pela ausência de liberdade, implícita ou explícita, em diversos períodos históricos e em variados contextos culturais, sendo, portanto, praticamente indissociável da própria história do ser humano sobre a face da Terra.

Em Quanto Vale ou é Por Quilo?, Ernani Poeta (utilizando o mesmo título do filme de Sérgio Bianchi) recaptura a questão da liberdade humana transpondo-a cenicamente, em forma de musical, examinando o denso e tenso tema do tráfico humano e seus desdobramentos: a prostituição e o tráfico de órgãos.

Em uma éspécie de prólogo, a peça começa com uma ruptura de expectativa do público: os três sinais que pontuam o início do espetáculo soam enquanto as pessoas ainda esperavam do lado de fora do teatro Renascença. Passado o estranhamento inicial, logo a plateia, de pé, e entre conversas, se cala (ao menos em parte), diante do enfileiramento do elenco atrás das portas de vidro. A analogia é clara: os atores são postos como produtos em uma vitrine, representado, portanto, sujeitos com sua individualidade e valores violados, reduzidos a condição de mercadoria. É interessante perceber a provocação de Poeta: ao deslocar a plateia de sua posição “natural”, isto é, sentada confortavelmente nas poltronas do teatro, ele nos prepara para o encontro com personagens também deslocados de seu posicionamento "natural", destituídos de sua condição humana: se tratam de sujeitos tomados como objetos.

A objetivização do sujeito prossegue quando Evelyn Roe (Cláudia Rocha) surge cantando sua trágica história sobre uma caixa de madeira, ocupada por um ator. Destaque para a bela voz da atriz e para o figurino e maquiagem, condizentes com sua tétrica tajetória. Aliás, plasticamente, a iluminação e a economia de cores e de apetrechos cênicos, funciona muito bem em um espetáculo que se dispõe a refletir sobre a miséria humana tanto dos explorados quanto dos exploradores.

Com a entrada de Mack, Jhonny e Barrabas (Juliano Fortini, Pedro Andrade e Daniel Vasconcellos, respectivamente), o trio dos exploradores, já se pode vislumbrar que a abordagem de Poeta recorrerá a uma divisão maniqueísta dos personagens, superficialmente presos a sua condição emblemática. E aqui o texto perde um pouco a força dramática pela tinta forte utilizada pelo diretor-autor. Não enxergamos, em momento algum, a humanidade desses personagens, nem da Madame (Roberta Turski). Eles não vacilam, não tem profundidade psíquica, apenas agem de acordo com sua volúpia mercantilista.

Semelhante fenômeno se observa com Jenny, Dóris, Justine e Shirley (Marci Berselli, Helena de Bem, Lílian Roisenberg e Graziela Franco) todas –mulheres!– frágeis vítimas de um cruel sistema. É como se todas formassem um único personagem desdobrado em quatro, cujas narrativas, mentes, e conflitos, fragilmente se esboçam em cena. Um tema que por si só já emociona não precisa recorrer a este tipo de expediente de melodramatização. Hoje em dia, sabe-se que as relações de poder não são fixas, sendo que as posições de dominante e dominado flutuam, se cruzam, se (con)fundem. Outro ponto baixo foi a repetição do já batido texto de Bertolt Brecht que fala para não tomarmos como natural o que é de hábito. A repetição deve ser um recurso utilizado com cálculo de intenção. Excessiva não provoca a ênfase, mas o esvaziamento de sentidos.

E por falar em esvaziamento de sentidos, em alguns momentos as músicas, com letras de Brecht, não se inserem da melhor maneira na estrutura do espetáculo, por não efetivarem uma progressão narrativa. O que conferiu, em alguns momentos, o aspecto de uma colcha de retalhos mal-costurada.

Fora os tropeços de concepção, cabe ressaltar a sintonia entre os atores (com boas atuações); a excelente entrada do povo protestante, marcando o início do segundo ato com a canção Ao Invés de, pela impressão de novo ritmo ao tom lúgubre reinante; a música do pianista Gilson Geiger; e, especialmente, o diálogo entre a Madame e o Inspetor Chaves, revelando o cinismo e o jogo de interesses nesse embate.

Como era de se esperar, o término da peça se dá de modo pessimista – com a morte de Mack (o lado mais fraco desta corrente), com a comprovação da conivência da polícia, e com o estupro de Justine (a única traficada, de fato, rebelde) por Barrabás – dando a entender que o ciclo de exploração não se encerra com o fechamento das cortinas. A universalidade e atemporalidade do tema ficam bem expressas pela ausência de uma moldura espaçotemporal, um grande acerto de Poeta. A ideia de um ciclo vicioso pode ser lida pela estrutura circular do espetáculo, cujo Gran Finale se dá novamente com o canto de Evelyn Roe, desta vez sobre diversos corpos.

Apesar de discordar da insistência em culpabilizar o público e a sociedade e do meu desconforto com o discurso de vitimização das personagens para ganhar a adesão do espectador, Quanto Vale ou é Por Quilo?, certamente, é um espetáculo com fôlego para novas temporadas, que merece ser visto e debatido. Para lembrar que as artes cênicas, muito mais que distrair ou entreter, nos colocam em face de nós mesmos, para nosso espanto e nossa íntima identificação. E, do espanto e da identificação, nascem a nossa autonomia de pensamento e de ação. E, novamente, falo de liberdade, citando Rosa Luxemburg, para quem a liberdade é sempre unicamente a liberdade de quem pensa diferente.




FICHA TÉCNICA:

Texto: Ernani Poeta, com músicas de Kurt Weill e letras de Bertolt Brecht.
Direção: Ernani Poeta
Fotografia: Myra Gonçalves
Elenco: Ana Carolina Santana, Andréa Almeida, Bruno Cardoso, Cláudia Rocha, Daniel Vasconcellos, Diego Brasil, Diego Farias, Fabiana Guiguer, Graziela Franco, Guilherme Nervo, Helena de Bem, Henrique Gonçalves, Juliano Fortini, Lílian Roisenberg, Marci Berselli, Pedro Andrade, Roberta Turski e Tatiane Gonçalves.
Pianista Convidado: Gilson Geiger