26/08/2010

Bebo Glória



"A Fina Flor" é mesmo uma peça finíssima (ai, tive que fazer o trocadilho), difícil sair da Sala Álvaro Moreyra descontente, decepcionado ou apático. As anfitriãs Claudete (Thiago Pirajira) e Maria Helena (Letícia Pinheiro) contagiam com sua alegria verborrágica e completamente afetada. Não poderia se esperar menos (ou comportamento diferente) de duas locutoras de rádio estudantil de 1952. Mais do que contagiar, elas ecoam pensamentos existenciais. Sim, porque a intimidade das lembranças - tudo aquilo que não é ofuscado pelo glamour - também é explorada, ao passo que são teatralmente contadas ao público.

A solução encontrada pela diretora Júlia Rodrigues para expor o que está por trás dos discursos ensaiados, da glória, foi a divisão da peça em dois momentos que vão se revezando periodicamente: o momento objetivo, no qual as duas exaltam seus momentos de glória com um texto acelerado e movimentação corporal frenética, e o momento subjetivo, no qual a luz, assim como a velocidade do texto e os movimentos, se reduzem. O cotidiano x o poético. Ainda que essa duplicidade antagônica de atmosferas seja primordial para o desenvolvimento da peça, a quebra de ritmo incomoda, acaba arrastando o espetáculo. Entretanto, em nenhum momento se torna maçante. Ainda mais com as lindíssimas intervenções musicais (parabéns a Ricardo Pavão), onde as personagens soltam a voz (parabéns a Marlene Goidanich!) com entrega e paixão.

A glória é representada com papel laminado (prateado!), que é cintilante no contato com a luz. Claudete e Maria Helena, com movimentos idênticos, aproximam-se da boca de cena e lançam os pedaços de papel reluzentes no ar, gritando: "À glória!". Mas nunca ficam satisfeitas, repetindo incontáveis vezes. Nem mesmo quando distribuem a "glória" ao público, que deve auxiliar fazendo o mesmo gesto. Fica claro que os tempos remotos - e gloriosos - estão na lama, na lembrança cheia de neblina e nostalgia. Talvez para esconder essa verdade inconveniente, a disputa se faz presente entre as colegas de trabalho. Não há respeito nem tolerância, tudo se resume a quem foi (ou é) a rainha da festa, a melhor voz da rádio, a mais formosa. Segundo a biologia, estamos diante de uma relação desarmônica intraespecífica, a competição.

Toda a movimentação de "A Fina Flor" segue uma lógica original e lúdica que provavelmente bebeu na fonte da dança contemporânea. A naturalidade (adquirida de forma bruta pelo improviso) se sobrepõe à técnica. O descuido é raro e a marcação é bem elaborada, caminhando de mãos dadas com a iluminação. Thiago Pirajara é autor de uma façanha inusitada: construir uma personagem estereotipada (em sua persona mais superficial) sem ser um estereótipo. O que, somado à desvantagem de interpretar uma mulher (desvantagem nítida ao cantar, principalmente), é notável. Boa composição a de Claudete, com apenas um vestido e batom, nada de seios, rímel, pulseiras, brincos e outras ameaças de futuras parafernálias. Letícia Pinheiro acompanha seu parceiro de cena com o mesmo nível de empenho, quiçá com menor carisma. O qual é redimido com sua voz, encantadora.

A praticidade do teatro é um verdadeiro luxo! Um vestido pode ser posto às avessas e tornar-se uma capa usada por um nobre; cubos, cuja função primeira é servir de assento, podem abrigar um espelho, uma penteadeira e um mar de canecas. No teatro, nada é unidimensional. Agora quero destacar uma cena que marcou minha memória: a passagem onírica em que uma senhora (Letícia P.) corre atrás de um menino arteiro (Thiago P.), o qual sacode sua capa incansavelmente, jogando os pedaços de papel prateado pelos ares, numa dança onde realidade e fantasia, passado e presente são os bailarinos. O toque final é dado pelos fragmentos de textos de Clarice Lispector e Marguerite Duras.

Claudete e Maria Helena estão sempre agarradas a uma caneca antes de entrar no ar. Café? Não. Chá? Também não. Uísque? Menos. Elas bebem glória. E é claro, se entopem, abusam, quase explodem. Hilária a cena onde Claudete termina de beber, arregala os olhos e cospe um punhado de papel laminado. Daí que Maria Helena se previne, derrama o conteúdo da caneca no chão.

Por que seria a existência comparada a uma fina flor? Porque tem pouca sustentação? Porque é atrativa, entretanto frágil? Porque tem períodos de reserva e outros de prosperidade?
Sobre a efemeridade da fama, dou a palavra a Walt Whitman:

Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas

Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimônias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tateando no escuro.

Saí do teatro pisando na glória.



Ficha Técnica
Elenco/Roteiro: Letícia Pinheiro e Thiago Pirajira, a partir de material audiográfico coletado em saídas de campo e de fragmentos de textos de obras literárias de Clarice Lispector e Marguerite Duras
Criação de Figurinos: Letícia Pinheiro e Thiago Pirajira
Confecção de Figurinos: Alcinda Pinheiro
Iluminação: Cláudia de Bem
Direção Musical: Ricardo Pavão
Músicos sonoplastas: Alexandre Fritzen da Rocha (teclado e percussão) e Ricardo Pavão (violão e percussão)
Preparação Vocal: Marlene Goidanich
Orientação: Professor Irion Nolasco
Espetáculo originado nas disciplinas de Estágio de Atuação I e II
Duração: 60 min

13/08/2010

Algemas de Cristal



Ao escrever "À Margem da Vida" ou "Zoológico de Vidro", em 1945, Tennessee Williams fez um retrato bastante realista - e com imensa carga lírica, como bem é conhecido - das consequências causadas pela crise econômica de 1929 na ótica da classe média norte-americana. Tom Wingfield "narra" as lembranças de sua família antes de juntar-se à Marinha Mercante e abandonar sua família, a qual já havia perdido uma das figuras masculinas: seu pai, o personagem representado em uma fotografia emoldurada.

Bueno, vamos ao que interessa: Laura Wingfield (Franciele Aguiar) é a irmã tímida, obcecada em cuidar e limpar de uma coleção de bichinhos de vidro. Essa obsessão é símbolo para o mundo de Laura: mundo de sonhos, irrealizável, platônico. Sua beleza é maculada por um defeito físico na perna, o qual relaciono com uma passagem de "Memórias Póstumas de Brás Cubas": Por que tão bela, se coxa? Por que coxa, se bela?. Franciele Aguiar tem o biotipo perfeito para encarnar a amante de música clássica que gira a alavanca da vitrola para fugir da realidade petrificadora. Uma vez introspectiva e aérea, Laura possui diversas pausas psicológicas na encenação, as quais Franciele soube respeitar sem deixar com que a fluidez do tempo fosse comprometida.

Amanda Wingfield (Martina Frölich), mãe de Tom e Laura, é a grande hipócrita, a mártir cristã que não tem desejo sexual e nem bebe líquidos quentes, que é para evitar câncer no estômago. Amanda, segundo alguns inspirada na mãe do próprio autor, é o auge cômico da peça de Williams. A viúva consegue arrancar gargalhadas da plateia com suas neuroses e seu desespero em sair da miséria. Martina Frölich carece de um engajamento corporal mais autêntico e possui um trabalho vocal equivocado, fazendo de sua Amanda uma senhora pouco convincente, apesar de ter uma das melhores personagens em mãos. Seu ponto alto é no que diz respeito a habilidade, principalmente com os objetos cênicos - que não são poucos! -, sempre ágil em administrar várias coisas ao mesmo tempo: o texto dado, a marcação, a relação com os objetos, a significação, o olhar.

O palco nos é entregue carregado, beirando à poluição. Entretanto, em nenhum momento o cenário apresenta-se como um empecilho, pois parte dele a atmosfera realista que se instaura ao longo da encenação. É como se o público realmente visualizasse o interior da casa Wingfield, a fé cênica existe.

Tom Wingfield (Henrique Monteiro) é o homem da casa, fardo este, por ele desprezado. É com a cara amarrada que acorda todos os dias de manhã (com os berros de Amanda) para trabalhar no depósito de calçados, contrariando suas ambições e a aspiração à poesia. Também não pode se recostar no estímulo materno, que está mais para pressão do que qualquer outra coisa. Amanda repousa suas esperanças de ascenção (econômica e social) nas mãos dos filhos: Tom, no crescimento profissional, e Laura, no envolvimento com um homem rico. As frequentes idas ao cinema - palavra que certamente camuflava uma vida boemia com direito a bar, casa de prostituição ou mesmo um namorado - são o escapismo que Tom encontra de uma vida que parece mais exigir do que conceder. Henrique Monteiro tem muitas cenas onde deve perder o controle e discutir com a mãe, falha ao tropeçar no texto e, por vezes, artificializá-lo. Faz uma caricatura do jovem angustiado, sufocado. Talvez uma amenizada no caráter egoísta e intolerante de Tom fosse a chave; humanizar.

Eis que uma boa notícia chega: convencido pela mãe, Tom convida um colega do depósito (de cargo superior) para jantar com a família. Amanda começa a chiar e borbulhar de contentamento, é a chance de sua filha! Que comecem os preparativos, pois: desde as decorações até uma Laura emperiquetada, com direito à laço na cintura e tudo, pronta para ser embalada e consumida. Porém, ao escutar o nome do rapaz, Laura percebe que este estudara na mesma escola que ela, por quem nutria uma paixão reprimida. Era o espectro do passado querendo assombrá-la, despertar novamente o sentimento adormecido.

Jim O'Connor (Dudu Engers) já impressiona pelo modo como se veste, esbanjando elegância. Dudu entra em cena com um personagem belamente construído, movimenta-se de forma consciente, em uma manipulação orgânica. Encontrou uma voz adequada para o tipo galante - sem ser canastrão e cair no lugar comum - conseguindo sustentá-la. É um prazer perceber a química que ele e a parceira Franciele possuem ao contracenarem.

Amanda corre até a entrada para abocanhar o convidado fazendo uso de sua hipocrisia: ressalta o modelo de virtude que - ela tem certeza - Jim possui, ao passo que propagandeia o tesouro de filha ao qual deu à luz, afirmando dotes culinários e domésticos. Após o jantar, a luz do apartamento é cortada, levando Jim e Laura à uma conversa banhada à luz de velas. Ela desiste de se esconder e aceita ser reconhecida; ele, de qualquer forma, não perde tempo ao utilizar seu charme para encantá-la. É bastante cavalheiro e conclui seu pensamento dizendo que o problema de Laura é ter complexo de inferioridade, tendo como solução imediata um beijo (!). Pronto, o estrago está feito. O rapaz deixa a casa perturbado, dizendo que marcou encontro com a noiva Bete. A garota fica no chão, arrasada, o coração maltratado. E a mãe, completamente frustrada ao saber da existência da tal Bete, desconta o desespero no filho, sem medo de usar palavras proibidas até então. A troca de palavras entre mãe e filho é a gota d'água para Tom, que resolve fugir.

"À Margem da Vida", cujo título original é "The Glass Menegarie", é uma representação realista que se funde com uma atmosfera de sonho para conjugar aquilo que os personagens são com o que desejam ser. A divisão entre uma e outra são as algemas de cristal criadas por nós mesmos. E destas, uma consequência é certa: cair à margem da vida.

Até que... Puf. Passou.
A vida é um sopro.



Ficha Técnica
Autor: Tennessee Williams
Direção: Patrick Peres
Elenco: Dudu Engers, Franciele Aguiar, Henrique Monteiro e Martina Fröhlich
Iluminação: Luis Eduardo
Orientação: Xico de Assis e Rodrigo Ruiz
Fotos: Rodrigo Ruiz
Duração: 1h30min