14/12/2010
Voz, Veneno, Vulto
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
E sons soturnos, suspiradas mágoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre remagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febirl agitação de um pulso.
Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas no sonho,
Almas que se abismaram no mistério.
Cruz e Souza
“Três atrizes, três histórias, vozes que ecoam na noite urbana. Nas ruas, nos bares, nos lares...fragilidades, fatalidades... “
Presenciei “Vozes Urbanas” sentado em meio às letras – pedaços de jornais: há assento mais provocativo do que repousar a bunda nas notícias? -, cercado pelas letras fixadas nas paredes com dizeres poeticamente despojados, e capturado pela voz de Deborah Finocchiaro através das letras suspirantes da canção de sua irmã, Lory F. -> http://www.buzinadogasometro.com.br/web/artista/Perfil.aspx?id=152
O Grupo dos Cinco, tendo iniciado suas atividades em 2003, possui uma característica que eu prezo muito: compartilhar conosco – público – seu processo criativo. A plateia-teste possibilita a percepção do que deve ser adicionado, removido, modificado ou mesmo lapidado, tanto para a direção, quanto para o elenco. A sala 505 da Usina do Gasômetro é o lugar ideal para uma leitura performática de teor corrosivo. Ao sair do elevador topamos com um quinto andar escuro, sempre com alguma manifestação artística sinistra, lado b total. É preciso caminhar um longo e estreito corredor para então adentrar a pequena sala, negra e de paredes irregulares.
“Vozes Urbanas” foi o primeiro trabalho do jornalista paulista – e dramaturgo – Sérgio Roveri, genialmente escrito em 2003. Nesta adaptação, para cada um dos três ambientes havia um spot de luz: a rua, o lar e o bar; a confissão, o segredo e a tara; a puta, a ex-mulher e o freguês; Deborah Finocchiaro, Sandra Alencar e Patrícia Soso. Pronto! A mesa está posta. E se o encarregado por essa função foi o vencedor do Prêmio Shell 2006 pela categoria de Autor por “Abre As Asas Sobre Nós”, Sérgio Roveri, está nas mãos de Beto Russo a lógica estética e condutora da montagem. Não de uma peça de teatro – infelizmente! – mas de uma ilustre leitura performática, ainda que eu não goste do termo “leitura” para este caso, já que o trabalho de atriz dessas três mulheres de possibilidades incalculáveis, em conjunto com a direção, rompem com a passividade da simples leitura textual. Aqui o texto é dado com veracidade voraz, de forma genuína. Não se lê, dramatiza-se. A construção da personagem existe, a técnica existe, a intenção existe. As únicas diferenças mais fortes entre uma leitura dramatizada e uma peça de teatro redondinha são a papelada nas mãos das atrizes – o roteiro – e o fato de seus olhos estarem voltados majoritariamente para ele. A plateia raramente ganha um olhar, é como se o feixe luminoso cegasse aquelas que estão em cena.
Ao escrever esta análise, levantei um questionamento: como se alcança a coerência e o brilho ao construir uma leitura performática na qual cada monólogo utiliza-se de um extremo lado do palco, incluindo o fato de que as personagens nunca interagem diretamente umas com as outras? A solução foi se formando aos poucos em minha mente, o caminho trilhado pelo autor e pelo diretor foi emergindo como a ponta de um iceberg: acredito que sejam as semelhanças incitadas pelos questionamentos existenciais erguidos pelas personagens através de suas vozes urbanas. O que é muito engraçado, porque também há diferenças agudas além dos ambientes, surgindo aí um interessante paradoxo. Mas não por isso a quebra da unidade.
A atriz Deborah F., de voz marcante, apresenta um desempenho muito satisfatório ao tomar para si os problemas da puta de meia arrastão, botas e vestido colado contra o corpo. Acaba sentindo-se humilhada por um cliente que resolve não lhe dirigir a palavra enquanto andam interminavelmente de carro, sem ao menos ligar o rádio. Ela chega a confessar o episódio que foi o divisor de águas em sua vida: a mijada que levou no rosto vinda de um cliente pervertido, que ainda a agrediu devido aos berros e socos da puta indignada. Chegou em casa completamente suja, não podendo lavar o principal alvo de degradação: a alma. Por isso o encaixe perfeito das canções de Lory: "cicatriz fica no corpo e é eterna como tatuagem". A partir daí ela aprendeu a dividir as coisas, a não admitir arranhões, a cobrar mais, a cuidar de seu filho.
“E a perseguição de alguém que está querendo tirar vantagem da nata do lixo do mijo do povo, do pouco que temos, do réu e do louco...”
“Tira de mim esse trem (pênis!), sanguessuga é covardia”
Sandra Alencar, indicada ao Prêmio Açorianos por “Adoração”, estava paralisada no centro do palco quando entrei. Lembrava uma louca de alta periculosidade, fugitiva de sanatório, com seus trajes brancos, lisos, e o fio de um telefone enrolado no corpo. Logo depois mostrou-se uma dona de casa inofensiva, desconfiadíssima com as freqüentes ligações de um estranho durante a madrugada. Sandra acredita nessa mulher “equilibrada” que afirma chamar a polícia e exige que o estranho pare de ligar, ao mesmo tempo em que jamais desliga o telefone, atraída pelo interesse do outro em conversar com ela. O ápice acontece quando o estranho diz um segredo íntimo que ela havia contado apenas para o seu ex-marido: ela adora não precisar sair da cama para soltar um belo par de peidos, agora que está solteira. A mulher surta, arrepia-se toda ao ouvir a palavra “peido”. É uma graça!
“Quando a garganta seca revela toda a angústia que há debaixo de todo esse prazer”
“É preciso explodir pra renovar”
Patrícia Soso, indicada ao Prêmio Açorianos por “Fora do Ar” -> http://percebeoteatro.blogspot.com/search?q=fora+do+ar e “Parasitas” -> http://percebeoteatro.blogspot.com/search?q=parasitas, utiliza-se de calças largas, tênis, camiseta sóbria e dicção propositalmente desleixada para entrar na pele do freguês bêbado. Passa a maior parte da leitura sentada em um lance de escadas ao lado de copinhos de plástico. E o bar já está pronto, teatro é um luxo! Na verdade o estabelecimento é uma espelunca, o próprio freguês é tomado por repulsa ao considerar vomitar no chão encardido. Ele possui uma linguagem mordaz com o garçom, dono do bar, a ponto de meter um revólver em sua boca. Após os ânimos se acalmarem, o freguês conta a maior de suas taras para o garçom: trepar com uma dentista no consultório. Considera este um fetiche único, nunca realizado. Orgulha-se. O garçom falha ao conseguir a posse do revólver, achando que o outro teria medo da morte. Decadentes raramente possuem esse tipo de medo, e outra: nem mesmo carregada a arma estava! Patrícia nunca me decepcionou em cena e não foi dessa vez, de corpo inteiro, precisa, orgânica. As histórias do freguês, hilárias, foram corretamente reproduzidas pela atriz.
Sérgio Roveri faz literatura do calibre de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues, comparações inevitáveis. Não há como permanecer indiferente às vozes urbanas - sejam essas gemidos, sussurros ou gritos -, pois elas penetram mente e coração. Tal é a força da cópula literária de mãos dadas ao teatro e à performance.
“Não é só fumaça e ainda há água pra beber”
Ficha Técnica
Elenco: Deborah Finocchiaro, e Patrícia Soso e Sandra Alencar
Direção / Iluminação: Beto Russo
Trilha Sonora Executada Ao Vivo: Deborah Finocchiaro
Compositora: Lory Finocchiaro
Sites Relacionados
http://www.grupodoscinco.com/
http://www.deborahfinocchiaro.com/
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