13/08/2010
Algemas de Cristal
Ao escrever "À Margem da Vida" ou "Zoológico de Vidro", em 1945, Tennessee Williams fez um retrato bastante realista - e com imensa carga lírica, como bem é conhecido - das consequências causadas pela crise econômica de 1929 na ótica da classe média norte-americana. Tom Wingfield "narra" as lembranças de sua família antes de juntar-se à Marinha Mercante e abandonar sua família, a qual já havia perdido uma das figuras masculinas: seu pai, o personagem representado em uma fotografia emoldurada.
Bueno, vamos ao que interessa: Laura Wingfield (Franciele Aguiar) é a irmã tímida, obcecada em cuidar e limpar de uma coleção de bichinhos de vidro. Essa obsessão é símbolo para o mundo de Laura: mundo de sonhos, irrealizável, platônico. Sua beleza é maculada por um defeito físico na perna, o qual relaciono com uma passagem de "Memórias Póstumas de Brás Cubas": Por que tão bela, se coxa? Por que coxa, se bela?. Franciele Aguiar tem o biotipo perfeito para encarnar a amante de música clássica que gira a alavanca da vitrola para fugir da realidade petrificadora. Uma vez introspectiva e aérea, Laura possui diversas pausas psicológicas na encenação, as quais Franciele soube respeitar sem deixar com que a fluidez do tempo fosse comprometida.
Amanda Wingfield (Martina Frölich), mãe de Tom e Laura, é a grande hipócrita, a mártir cristã que não tem desejo sexual e nem bebe líquidos quentes, que é para evitar câncer no estômago. Amanda, segundo alguns inspirada na mãe do próprio autor, é o auge cômico da peça de Williams. A viúva consegue arrancar gargalhadas da plateia com suas neuroses e seu desespero em sair da miséria. Martina Frölich carece de um engajamento corporal mais autêntico e possui um trabalho vocal equivocado, fazendo de sua Amanda uma senhora pouco convincente, apesar de ter uma das melhores personagens em mãos. Seu ponto alto é no que diz respeito a habilidade, principalmente com os objetos cênicos - que não são poucos! -, sempre ágil em administrar várias coisas ao mesmo tempo: o texto dado, a marcação, a relação com os objetos, a significação, o olhar.
O palco nos é entregue carregado, beirando à poluição. Entretanto, em nenhum momento o cenário apresenta-se como um empecilho, pois parte dele a atmosfera realista que se instaura ao longo da encenação. É como se o público realmente visualizasse o interior da casa Wingfield, a fé cênica existe.
Tom Wingfield (Henrique Monteiro) é o homem da casa, fardo este, por ele desprezado. É com a cara amarrada que acorda todos os dias de manhã (com os berros de Amanda) para trabalhar no depósito de calçados, contrariando suas ambições e a aspiração à poesia. Também não pode se recostar no estímulo materno, que está mais para pressão do que qualquer outra coisa. Amanda repousa suas esperanças de ascenção (econômica e social) nas mãos dos filhos: Tom, no crescimento profissional, e Laura, no envolvimento com um homem rico. As frequentes idas ao cinema - palavra que certamente camuflava uma vida boemia com direito a bar, casa de prostituição ou mesmo um namorado - são o escapismo que Tom encontra de uma vida que parece mais exigir do que conceder. Henrique Monteiro tem muitas cenas onde deve perder o controle e discutir com a mãe, falha ao tropeçar no texto e, por vezes, artificializá-lo. Faz uma caricatura do jovem angustiado, sufocado. Talvez uma amenizada no caráter egoísta e intolerante de Tom fosse a chave; humanizar.
Eis que uma boa notícia chega: convencido pela mãe, Tom convida um colega do depósito (de cargo superior) para jantar com a família. Amanda começa a chiar e borbulhar de contentamento, é a chance de sua filha! Que comecem os preparativos, pois: desde as decorações até uma Laura emperiquetada, com direito à laço na cintura e tudo, pronta para ser embalada e consumida. Porém, ao escutar o nome do rapaz, Laura percebe que este estudara na mesma escola que ela, por quem nutria uma paixão reprimida. Era o espectro do passado querendo assombrá-la, despertar novamente o sentimento adormecido.
Jim O'Connor (Dudu Engers) já impressiona pelo modo como se veste, esbanjando elegância. Dudu entra em cena com um personagem belamente construído, movimenta-se de forma consciente, em uma manipulação orgânica. Encontrou uma voz adequada para o tipo galante - sem ser canastrão e cair no lugar comum - conseguindo sustentá-la. É um prazer perceber a química que ele e a parceira Franciele possuem ao contracenarem.
Amanda corre até a entrada para abocanhar o convidado fazendo uso de sua hipocrisia: ressalta o modelo de virtude que - ela tem certeza - Jim possui, ao passo que propagandeia o tesouro de filha ao qual deu à luz, afirmando dotes culinários e domésticos. Após o jantar, a luz do apartamento é cortada, levando Jim e Laura à uma conversa banhada à luz de velas. Ela desiste de se esconder e aceita ser reconhecida; ele, de qualquer forma, não perde tempo ao utilizar seu charme para encantá-la. É bastante cavalheiro e conclui seu pensamento dizendo que o problema de Laura é ter complexo de inferioridade, tendo como solução imediata um beijo (!). Pronto, o estrago está feito. O rapaz deixa a casa perturbado, dizendo que marcou encontro com a noiva Bete. A garota fica no chão, arrasada, o coração maltratado. E a mãe, completamente frustrada ao saber da existência da tal Bete, desconta o desespero no filho, sem medo de usar palavras proibidas até então. A troca de palavras entre mãe e filho é a gota d'água para Tom, que resolve fugir.
"À Margem da Vida", cujo título original é "The Glass Menegarie", é uma representação realista que se funde com uma atmosfera de sonho para conjugar aquilo que os personagens são com o que desejam ser. A divisão entre uma e outra são as algemas de cristal criadas por nós mesmos. E destas, uma consequência é certa: cair à margem da vida.
Até que... Puf. Passou.
A vida é um sopro.
Ficha Técnica
Autor: Tennessee Williams
Direção: Patrick Peres
Elenco: Dudu Engers, Franciele Aguiar, Henrique Monteiro e Martina Fröhlich
Iluminação: Luis Eduardo
Orientação: Xico de Assis e Rodrigo Ruiz
Fotos: Rodrigo Ruiz
Duração: 1h30min
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