14/09/2014

Eu Morro, Tu Morres, Ele Morre



Acredito que as sessões “especiais” são sempre mais intensas. Há alguma coisa diferente nelas, talvez seja o nível de concentração do espetáculo em tão somente algumas pessoas. Digo isso porque o horário do espetáculo foi modificado para às 16h, entretanto, o artista não hesitou em fazer uma sessão especial no horário oficial, 20h. É preciso destacar essa atitude como um verdadeiro toque de humanidade, principalmente tratando-se de uma peça ou esquete com entrada gratuita.



Adentramos um local escuro, iluminado apenas por algumas velas que revelaram um cenário cheio de elementos capazes de criar a atmosfera perfeita para o monólogo em questão, Retalhos. Não bastasse isso, há também duas vozes que se mesclam em uma dança que celebra a morte. Não importa se uma das vozes é um áudio gravado, ali eu pude testemunhar ator e cantora juntos, complementos de uma única mensagem cheia de nuances, como um ser humano único cheio de eus ou órgãos ou elétrons. Sim, a vida é besta como um grito sufocado de dor. Mas vale a pena. Porque de repente estou lendo um livro debaixo de uma árvore e me dou conta de que a minha vida é mais interessante do que a de Robinson Crusoé.



A pessoa morre depois de tanto verbo. Eu morro. A pessoa morre de fome. Você morre. Depois de tanto verbo a pessoa morre. Ele morre. A pessoa morre. A pessoa morre. É assim que inicia Retalhos, com o desabafo sincero do personagem - ou do próprio ator Sérgio Sal - relacionado com a música de Karina Buhr. Confesso que inicialmente o que mais me chamou atenção foi a atmosfera, o cenário, a música. O ator-personagem, não. Ele estava propositalmente nervoso, fazia parte dessa primeira cena, mas identifiquei uma voz cotidiana e um nervosismo além do personagem. Claro que tudo isso me causou uma primeira impressão negativa. Confesso também que foi definitivamente e somente uma primeira impressão, pois bastou o ator engrenar na miscelânea de verbos que é a primeira fala do monólogo para eu me ajeitar na cadeira e escutar atentamente, completamente seduzido pela forma com que ele brincava com o texto e com o próprio conteúdo do texto, todo costurado.



Nervoso ou não, eu pude presenciar concentração, talento, entrega e paixão em um único homem. Paixão pela vida, pelo sofrimento, pela vontade de continuar apesar de todas as dificuldades. É um homem que está à beira de causar a própria morte, mas o faz de maneira tão intensa, melancólica, reflexiva e até mesmo cômica que chegamos a nos perguntar se realmente é a morte que ele deseja ou uma profunda transformação. Afinal, o que é a morte senão uma grande transformação? Retalhos mexe com os nossos sentidos transformando dor em poesia. O local parece estar se desmanchando, é como se corressem lágrimas das paredes. Há diversas texturas e cores pálidas. Esculturas enigmáticas e lânguidas de ferro, pinturas abstratas, fundo com porta de vidro e chão de cimento cru. Três abacates e um cacto para dar um tom de comicidade e vida.



É preciso de ousadia, coragem e empenho para criar o próprio texto e se dirigir. Esse é o caso de Sérgio Sal, que foi muito feliz em sua aventura de ser ao mesmo tempo autor, diretor e ator de seu trabalho. Mesclando Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e episódios de sua própria vida, eis o roteiro de Retalhos. Quero destacar uma das cenas que me fizeram ir longe, em uma viagem profunda de cinco segundos. Quando o personagem coloca a mão na textura da parede lateral e diz: (...) impregnado de eternidade. Não consegui tirar os olhos daquele movimento com as mãos e da própria parede por pelo menos cinco segundos, transportado que fui para outro lugar, talvez de encontro com as minhas memórias de infância. Esse é exatamente o tipo de reação que somente as obras sensíveis, bem trabalhadas e potentes são capazes de despertar.



Sérgio Sal rompe o espaço de encenação estabelecido desde o início, vai até a plateia, interage, toca, oferece o pequeno copo que eu ingenuamente pensei ser água mas descobri ser álcool ao aceitar e o líquido descer queimando a minha garganta. Retalhos também queima a garganta e com muito estilo, pois faz brotar vida aonde é deserto, em uma dança contínua onde vida e morte se dão as mãos rumo a um final extremamente poético. O ator apaga vela por vela, abre um guarda-chuva preto, abre a porta de vidro e... Por um segundo achei que ele fosse cair, se jogar. Terminar com a própria vida. Ao invés disso ele desaparece na escuridão, descendo uma longa escada. Depois de tanto verbo, a pessoa morre, a pessoa se transforma. Bravo.

Por Guilherme Nervo

Fotos: Francisco Gomes

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