24/11/2012

Eu Sou x Narcisismo





O Feio alcança um nível de provocação muito significativo, causa a sensação de que está sendo apresentado no meio da plateia e não diante dela, consolidando-se como uma obra capaz de eletrocutar os sentidos. Cada recurso cênico foi bem utilizado e - em conjunto com as atuações e a direção - formou-se um organismo interdependente, no qual cada órgão contribuiu para a construção de uma atmosfera perturbadora de vida e morte.



Lette (Rossendo Rodrigues) é um engenheiro que acaba de fazer uma importante descoberta: um conector de última geração. O que renderá a ele visibilidade através de uma conferência com estadia paga e outros atrativos. A outra importante descoberta é que o seu assistente, Carman (Maurício Casiraghi), foi o escolhido para apresentar o tal conector. A justificativa de seu chefe (Paulo Roberto Farias) está na última – e dolorosa - descoberta: Lette é feio.



De homem normal, com mulher (Danuta Zaghetto) e emprego, Lette passa a ser um homem tremendamente feio. Chocado com a revelação, ele decide submeter-se a uma cirurgia plástica que modificará todo o seu rosto. De homem feio, Lette passa a ser uma obra-prima. Seu encantamento dura até ele começar a perceber que o seu rosto está sendo produzido em série, o que vai levá-lo a trilhar um caminho profundo e inesperado: quem sou eu?



Uma das características mais marcantes do espetáculo e do texto é o impulso desenfreado de seus personagens. Como se não vivessem em uma sociedade regrada, exibem uma liberdade de expressão sem amortecedores ou censores. Eles nos remetem às figuras de animais. A diretora Mirah Laline encontrou uma linguagem de atuação consistente com esse propósito, uma exacerbação corporal e vocal. Algo que chega a se tornar caricatural, como nas figuras da velha rica com uma língua obscena e seu filho homossexual, sempre chupando um pirulito rosa de maneira afetada. O mérito do elenco está em extrair o melhor desses personagens, recheando-os de um humor ácido ao invés de deixá-los cair no humor rasteiro. Outra característica instigante do espetáculo é a maneira como os personagens se mesclam, se confundem, chegando a praticamente se fundirem. De repente eu não sei mais diferenciar o chefe de Lette do seu cirurgião plástico, descubro a utilização de um recurso teatral arriscado: a interpretação de mais de um personagem por ator, levando em conta a contaminação corporal e vocal que o personagem anterior deixa no personagem presente ou futuro. Cria-se um efeito de estranhamento coerente com a proposta do texto e da encenação, que exploram uma hiper-realidade consideravelmente real!



A escolha por figurinos homogêneos e sóbrios, assim como a simplicidade do cenário, enfatizam o trabalho do ator. A ilusão de realidade é criada e rompida - através da atuação - de acordo com a necessidade, dispensando grandes cenários ou figurinos detalhados. Um bom exemplo é o rosto de Lette após a cirurgia: nada de concreto é modificado no rosto do ator, o que não prejudica em absoluto a nossa imaginação. E esse tipo de recurso é o que faz do teatro uma arte sublime, aguça nossa capacidade de acreditar a partir de situações e soluções ambíguas, não óbvias.



A trilha sonora é um auxílio fundamental na criação de uma atmosfera de perturbação. A música principal, Du Hast – Rammstein (http://www.youtube.com/watch?v=7_J6otJW3sw), apresenta uma força absurda, simbolizando a brutalidade humana em busca da perfeição física. É constituída por fortes batidas que suscitam medo e desorientação, provavelmente o estado interior de muitas pessoas quando se veem numa sociedade doentia e esmagadora. A música – e as próprias imagens do espetáculo – revelam o caminho do ser humano em direção à neurose e a como estamos entranhados nesse padrão de pensamento a ponto de não conseguir a liberdade. É o que vemos nas partituras do espetáculo, explorando a fisicalidade do elenco e sua consequente carga de signos.



Marius Von Mayenburg é um dramaturgo alemão nascido em 1972, escreveu Parasitas (Parasiten) em 1999 e O Feio (Der Häßliche) em 2007. Essas peças dialogam entre si ao darem vida a individuos acima de tudo egoístas. Esse ego doente se manifesta sob diversas formas, como culpa, medo, tristeza, indiferença, ressentimento, inveja ou ciúme. Construir uma comédia a partir desses elementos densos é uma habilidade e uma conquista. Rir do que nos tornamos parece funcionar melhor do que chorar. Para quem quiser mais detalhes à respeito de Parasitas, recomendo ler o que escrevi sobre a montagem da companhia Vai! de teatro no seguinte link: http://percebeoteatro.blogspot.com.br/2010/06/minhoca-de-acucar.html.



A cena em que os sósias de Lette capturam outras pessoas para a alteração de seus rostos carrega impacto e funciona bem com o uso das máscaras idênticas, revelando um rosto de beleza padrão, como o Johnny Bravo, mas ao mesmo tempo assustador e grotesco. Eu simplesmente reduziria o tempo dessa cena ou substituiria movimentações repetitivas por movimentações inovadoras, que nos lançassem outras imagens que não a imagem centralizadora de que o ser humano está sendo absorvido e manipulado por sua busca desenfreada pela “felicidade”. Não ficam dúvidas de que tanto as atuações quanto a direção estão afiadas e alcançam o que propõem. A escolha pela atuação caricatural em alguns personagens e os movimentos mecânicos são os únicos elementos que, às vezes, não funcionam. Causam uma quebra prejudicial ao espetáculo, mas o ritmo acelerado e polifônico se mantém.



O Feio surgiu de uma disciplina do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, o Atelier de Composição I, com a orientação da professora e diretora Patrícia Fagundes. A criação de um espetáculo a partir de uma disciplina acadêmica é uma atitude encorajadora e que tem o potencial para catapultar em um resultado satisfatório e consistente. Existe uma cena que é muito poderosa e incrivelmente simples: o elenco fica grudado na parede em determinadas posições enquanto dá o texto, isso causa uma ampliação do que está sendo dito, uma vivacidade, cores e cheiros. Ao mesmo tempo em que nos conduz a um ambiente de personagens/marionetes chapados.



Mais para o final da peça, Lette descobre que o filho homossexual da velha rica com quem estava se relacionando, também fez a cirurgia plástica. Eles impedem que Lette se jogue de um prédio, atormentado que está com sua inesperada situação, de um grande incêndio ele passa a ser uma chama tímida e inofensiva. Não fica explícito o resultado da face do rapaz, mas podemos acreditar em uma situação muito interessante: o rapaz gay alterou seu rosto para o antigo e original rosto de Lette. Ao se deparar com seu eu verdadeiro, essência, Lette se apaixona e os dois começam a se beijar. Essa cena é maravilhosa, porque nos traz a pergunta que é o cerne da peça: desejo ser quem eu sou ou desejo quem eu sou?





Ficha Técnica

Autor: Marius Von Mayenburg Realização: Ato Cia. Cênica Direção: Mirah Laline Orientação: Patricia Fagundes Elenco: Danuta Zaghetto, Marcelo Mertins, Paulo Roberto Farias e Rossendo Rodrigues Concepção e produção de vídeo: João Gabriel de Queiroz e Mauricio Casiraghi Iluminação: Lucca Simas Figurino: Marina Kerber

Por Guilherme Nervo

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