10/03/2012

O Devaneio e a Aplicação



Nenhuma, não tenho autoridade nenhuma. Nunca me aconteceu nada. Nunca aconteceu nada a nenhum dos nossos amigos. Eu nunca sofri. Nem os meus amigos.

Que se foda o melhor, esse sempre foi o meu lema. É o homem que baixa a cabeça e continua a avançar, contra ventos e marés, que consegue sair vitorioso. Um homem com coragem e aplicação.

Um oceano de molho que nos rodeia por todos os lados e nos sufoca em um volumoso oceano de molho. Mas a culpa é toda nossa. Não somos a vítima, somos a causa.


Cinzas Às Cinzas transpira equilíbrio e harmonia nos primeiros minutos. As luminárias estão no mesmo plano e são idênticas, as cadeiras estão igualmente posicionadas, a mesa está coberta por uma toalha vermelha impecável, e no primeiro plano repousam uma mala e uma lixeira. A casa de campo possui uma simetria perfeita que é acentuada com a chegada do “casal maravilhoso”, infiltrado pela música romântica What a Wonderful World. Não havia melhor escolha do que essa canção, com sua melodia que desliza como mel no tronco, a letra idealizada e a voz emocionante de Louis Armstrong.


A partir do segundo em que o homem (Elielto Rocha) e a mulher (Marcia Berselli) começam a desvelar sua relação, a pele de Cinzas às Cinzas começa a desmanchar. Os sorrisos engessados do casal iniciam um processo de derretimento que deixa clara a defasagem entre o real e o ideal. A realidade dá sua primeira dentada na atmosfera harmoniosa do casal quando a mulher resolve falar do amante. Suas ações correm a favor da fala, ela desorganiza a casa, enquanto o homem recoloca tudo no devido lugar. Ainda que ferido, o orgulho do macho resiste. Mesmo quando a fêmea é explícita ao provocá-lo, vangloriando-se com saudade do tempo em que sua vida sexual era bem sucedida e ativa, com direito a uma fantasia erótica que a enlouquecia: beijar os punhos de seu amante e ter o pescoço envolto por suas mãos, como quem está a ponto de ser estrangulada.


A típica cena do chá inglês é subvertida pelo texto de Harold Pinter. Ao invés de compartilhar assuntos com o maior nível de decoro, ou nem tanto, afinal estamos em 1996; a conversa toma um caráter ácido. Aqui o chá tem efeito inverso: inquieta os ânimos. Devlin (o homem) quer uma descrição física do amante, quer concretude. Rebecca (a mulher) não admite ser chamada de querida, ela não é a querida de Devlin. Somente o amante a chamava de querida. A atriz joga as xícaras na lixeira sem piedade e com precisão, como se aquela ação fosse uma extensão de sua fala.


O amante era um guia turístico ou um grande timoneiro de navio em águas agitadas, era muito respeitado. Ele ia até a plataforma da estação de trem e arrancava os bebês das mães, que gritavam em desespero. Rebecca admite ficar incrivelmente perturbada com o barulho da sirene de polícia, porque no momento em que se afasta dela, se aproxima de qualquer outro. Revela seu lado patológico ao querer inteiramente para ela o barulho da sirene de polícia, tem um gosto pela aflição.


Devlin começa a fazer muitas perguntas, a dar margem ao seu incômodo. Diz que ela se sentiria muito melhor tendo confessado a infidelidade antes, como se ele fosse um padre, alguém posto à prova. O homem ideal é aquele que sai vitorioso. Aquele que não se importuna com realidades frívolas, com vadiagem, ou seja, com assuntos do coração. É o homem que baixa a cabeça e segue que sai vitorioso. Esse é o discurso de Devlin, um discurso machista, reacionário e que glorifica a alienação, a indiferença. Sem falar da hipocrisia, afinal ele está muito bem envolvido em assuntos do coração nessa peça. Essa é a principal ação dramática de Ashes To Ashes: a especulação amorosa.


Rebecca atinge um estado crítico, repete várias vezes a mesma coisa, persiste em esquivar-se das perguntas do marido. É quase como se ela estivesse dissimulando, mas a atuação de Berselli, apesar de trabalhar com a ambigüidade do texto, tende mais para a exploração do estado de alucinação que a mulher apresenta. Rebecca cavou fundo em suas emoções e nos labirintos de sua mente. Aqui, como em praticamente toda a peça, o devaneio da fêmea contrasta com a aplicação do macho, que faz perguntas objetivas ou deseja sair para ir ao cinema.


A reação de Devlin é a de explicar para a mulher que eles moram juntos em uma casa com um jardim lindo e que ela tem uma irmã simpática. Devlin dá um banho de aplicações: elogia a mulher e diz que deveriam começar novamente, esperando uma reação positiva e maravilhada dela. O que, é claro, não acontece. Toda essa determinação masculina tem alicerces frágeis, a ponto de tombar. Então Rebecca retoma sua postura de lucidez, dizendo que não podem recomeçar, porque já começaram, podem é acabar. As cinzas devem ser jogadas às cinzas. Não é mais suportável esperar que elas se reconstituam ou mesmo peguem fogo, afinal, são cinzas! Cinzas de um relacionamento.


A iluminação tem pouca significância, apenas a última cena apresenta um único foco de luz vermelha que banha Rebecca enquanto ela diz a última fala. Talvez um caminho interessante fosse explorar a iluminação através de diferentes ângulos, intensidades e frequências. Levar em consideração o teor subversivo do texto dramático, fazendo com que o ato de iluminar experimente a incerteza e o desespero iminente, características do texto. A impressão é a de que o casal vai se aniquilar a qualquer momento, o que gradualmente acontece, pois suas confissões ativam ciúme, raiva, humilhação e dúvida.


O figurino apresenta roupas elegantes que parecem encobrir a vida medíocre e cheia de tormentos do casal. O vestido branco de Rebecca comunica a tranquilidade que ela sempre quis, característica ameaçada pelo detalhe vermelho do vestido e pelos sapatos vermelhos. Devlin veste um paletó, o que corrobora com sua atitude: formalidade e decoro. Características que o ator construiu com sucesso, tanto ele quanto a atriz fizeram um trabalho digno de aplauso.


O que destoa Cinzas Às Cinzas, com belíssima direção de Luís Fabiano, são os problemas que assombram a relação cênica entre ator e atriz. Havia momentos em que eu não acreditava no que eles falavam e nem em quem eles eram. Por mais que as atuações individuais estejam afiadas, persiste um problema de química entre os dois na minha percepção. Elielto Rocha tem uma intenção vocal muito adequada, o texto se harmoniza com sua voz. Marcia Berselli me atrai tanto em cena quanto Rebecca no texto, foi uma tarefa difícil ler o texto sem pensar na atuação de Marcia, que ficou como uma marca no meu imaginário. Enquanto Devlin tira borbotões de uma maçã, reorganiza a casa retirando objetos da lixeira e barbeia-se, Rebecca chama atenção com suas frequentes saídas de sintonia (executadas com esmero por Berselli), é a tendência que a personagem tem de abandonar-se mergulhando em suas memórias.


A última fala de Rebecca é muito poderosa, ela conta que foi conduzida aos trens com uma senhora, ambas carregando seus bebês, mas o dela começou a chorar e então ela se obrigou a entregar ao homem (o amante de Rebecca?) que pedia o que ela carregava na trouxa. A mulher pergunta o que aconteceu com o bebê de Rebecca, ela responde salientemente nunca ter tido um bebê.


A reação de Devlin no meio dessa revelação é muito adequada e instigante. Ele imita a fantasia erótica que o amante dela costumava fazer, faz menção de estrangular a mulher. E o interessante é que ela parece reproduzir esse ato em sua vida, estrangulando memórias inoportunas, como a perda de seu próprio filho. A luz vermelha que ilumina Rebecca, mancha seu vestido branco como sangue, é o momento em que o detalhe vermelho do vestido escorre pelo corpo da mulher: o parto ocorre. Ela perde o bebê para o mundo.


Eu não tenho nenhum bebê.
Não sei de bebê nenhum.

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