02/04/2010
Alice de Lã
“Alice” não quer contar uma história com início, meio e fim. Não quer ter moral da história. A Cia. Espaço em Branco inspira-se na Alice de Lewis Carroll, mas não pretende contar uma fábula. Falando em pretensão, nos minutos iniciais de espetáculo, projetei o desenvolvimento que viria: uma montagem experimental e pretensiosa. Sim, carregada de poesia, mas ainda acorrentada ao esboço. Pois digo que me precipitei, “Alice” não pretende tanto. É simplesmente inovadora. Diverte fazendo refletir, toca interagindo.
Sissi Venturin cria um belo mosaico ao realçar (a dedo) fragmentos da obra original, o que geralmente funciona e é legítimo, proporcionando um espaço de liberdade muito amplo. Parte da plateia é formada pelos convidados da festa do chá, os quais celebram o desaniversário de cada um. Entretanto não é chá que Alice serve aos convidados, é seu próprio coração. Coração este (cheio de nuances), posto no liquidificador junto com açúcar, já que sua essência é amarga. Partindo para outro exemplo da liberdade criativa sendo usada de maneira adequada, recordo da cena em que Alice rompe a barriga soltando um grito estridente: jorram marshmallows em forma de coração, e ela, paralisada sobre o palco (que nem é palco, uma vez que há nivelamento entre atriz e plateia), diz apenas: “Coma-me”. Trata-se da celebração do corpo e do sangue como tentativa de unificação, aliás, são promovidas várias tentativas de união atriz-plateia. Outra que me vem à mente é a do poder ofertado ao público de libertar Alice de suas amarras, pois ela enovela-se com lã vermelha já no início do espetáculo.
Inclusive, a lã apresenta-se literalmente como fio condutor da “narrativa”, carregando a simbologia do emaranhamento em si mesmo. Ao adormecer, Alice cai na toca do coelho branco - seu inconsciente. Ali contempla um mundo maravilhoso e desconhecido, onde sente-se enrolada à mercê de tanto absurdo. Então surge o despreparo emocional, levando-a a desejar o retorno ao consciente - sua casa.
Sissi Venturin aventura-se ao interpretar os personagens principais, acertando em cheio na pantomima da lagarta fumante e na composição da rainha de Copas. No entanto, não foram raras as vezes em que me incomodei com a estridência do registro vocal da atriz (que também é a diretora). A voz afinada é um requisito para qualquer cantor, assim como a voz trabalhada e agradável de se ouvir deveria ser um requisito para qualquer ator. Fica a dúvida, pela excelência do trabalho, se a estridência é proposital ou não. De um modo ou de outro, o desconforto é recorrente.
“Alice” me levou à reflexão. O autoconhecimento, o olhar-se no espelho, tem suas intempéries. Quando abrupto, causa rejeição, sente-se vontade de regurgitá-lo. É justamente isso que ocorre à Alice quando mergulha em seu inconsciente e se depara com ela mesma, sendo a primeira reação o vômito e o mal estar. Amei a imagem derradeira do espetáculo: uma vez reunidas as lãs dos pratos dos convidados no vestido da Rainha de Copas, ela sai de cena levando consigo o fio condutor da “narrativa”. Afinal, todos os caminhos pertencem à rainha.
Ficha Técnica
Direção e Atuação: Sissi Venturin
Iluminação: João de Ricardo
Operação de video e áudio: Leonardo Remor
Direção e Arte dos vídeos: Sissi Venturin e Leonardo Remor
Fotografia e Montagem dos Vídeos: Tiago Coelho
Finalização de vídeo e áudio: Marcos Lopes
Ilustração e Design Gráfico: Talita Hoffmann
Colaboração criativa, afetiva e intuitiva:
Marina Mendo, Leonardo Machado e João de Ricardo.
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