28/11/2009

Tão feia que chega a ser bela



Dispensando condições meteorológicas, vamos ao que interessa: texto de Moacyr Scliar, direção de Guilherme Piva e interpretação de Inez Viana; o monólogo carioca com dois anos de caminhada revela a feia mais linda que pôs os pés no caríssimo Teatro do Sesc: "A MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA". A enxurrada de homens e mulheres que adentravam o teatro na segunda-feira (14/09), começava a surpreender: não apenas pela quantidade, mas pela aparente descentralização de público que ali havia; avistei um bom número de adolescentes.

“Tem algum Napoleão aqui hoje? Alguma Cleópatra? E Joana d’Arc? Eu gosto de Joana d’Arc. Tem Pelé por acaso?”

O cenário, uma larga pedra. O figurino, uma bonita composição de trapos que variavam do bege ao salmão, feita por Rui Cortez. Sentada na pedra, Inês conta-nos que descobre ter sido uma das 700 esposas do rei Salomão, há três mil anos atrás. Ora, que há de mal nisso? O que há de vir, caro leitor. O detalhe que há de vir: a feiúra.

Inez rodopia pelo palco cantando uma versão engraçadíssima de “Somewhere Over the Rainbow”, assim mergulhando no passado: a partir daí encarna todas as personagens que tiveram alguma ligação com a sua triste, isto é, feia história. Seu pai era o patriarca de uma fazenda, a riqueza resumia-se a algumas cabras e uma pequena propriedade. Ao se dar conta do rosto assombroso que tinha, tentou suicidar-se. Não o fez, pois tinha medo de comprometer a caveira.

“Tornei-me eremita”

Eremita que não tardou a ter um tórrido romance com a larga pedra. Nomeava os orgasmos como verdadeiros terremotos corpóreos. Mas, como qualquer um, apaixonou-se. Não pela pedra, que fique claro. Por um belo pastorzinho! Indignada ficou ao saber que o mesmo há muito namorava sua irmã, a bela. O pai, quando lhe contaram, apedrejou o pastorzinho, que foi embora. Logo mais, chega um escriba na fazenda. Detalhe: um escriba muito feio. Destaque para o ótimo trabalho corporal da atriz, desenvolvido por Isabel Themundo. Empolgadíssima com a idéia “de um novo caralho”, nossa mulher entra na tenda do escriba; que para sua surpresa, queria apenas lhe ensinar a escrever.

A feia letrada rasgava os papéis com a tinta da liberdade. Habilidade essa, que transpirava beleza. “Entrei em estado de permanente e etérea embriaguez”. E eis que chega uma carta anunciando que o fazendeiro devia ceder sua filha mais velha para tornar-se uma das esposas do rei. Pomposa, a feia em ascendência parte. Temerosa, cobre o rosto com espesso véu, que lhe dava um olhar recatado e sedutor. Ao entrar no harém, depara-se com uma infinidade de mulheres a fofocar.



Enlouquece pela imagem máscula e vertiginosa de Salomão, ao passo que após alguns dias ele a chama para a noite de núpcias. O inesperado: Salomão brochou. Sedenta e com a auto-estima arrasada, nossa mulher resolve escrever pedindo ajuda ao pai. “Ou fode, ou morre”. O rei acaba confiscando a carta, que nunca chega ao fazendeiro. Não resiste ao esplendor da carta bem escrita e decide “contratar” sua esposa para escrever a história da humanidade.

Assim promovida à esposa intelectual, começa a corrigir imperfeições como a barbárie, segundo ela, de o homem vir primeiro e a mulher “fudendo” com tudo. Também aproveitou para apimentar a relação de Adão e Eva e de jeito nenhum expulsá-los do paraíso, senão encorajá-los. Apesar de Salomão ter apreciado o texto da revolucionária, ela foi submetida à censura dos “sábios” anciãos; que radicalmente modificaram a obra transformando-a numa versão assim nomeada por ela de anti-luxúria.

O desfecho da peça se faz com um belo jogo de luzes e trilha sonora: a chegada da rainha de Sabá – para a desventura da feia – uma negra lindíssima; em conjunto da revolta do pastorzinho, que ateia fogo a um dos quartos do rei, assim queimando os pergaminhos escritos pela feia, objetivando a libertação da mesma. Os oitenta minutos de peça (que passam voando) são concluídos com a primeira noite da feia e Salomão.“Todas as posições foram exploradas”. Foi um verdadeiro banquete de amor. De manhã, no dia posterior, chega a hora da partida. Destaque para a belíssima luz (que aos poucos vai morrendo) de Maneco Quinderé.

Ficha técnica
Autor: Moacyr Scliar
Adaptação: Thereza Falcão
Concepção e direção: Guilherme Piva
Performance: Inez Viana
Música original e direção musical: Marcelo Alonso Neves
Cenário: Sérgio Marimba
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurino: Rui Cortez
Preparação corporal: Isabel Themudo
Duração: 80 minutos

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