28/11/2009

Ama: Escreve. Cozinha?



Na quinta-feira (17/09), lá por volta das 19h50min, me sentei em uma das cadeiras do velho Teatro do Sesc. De fundo, uma música sutil. Pouco antes de apagarem as luzes, notei que a maior parte das cadeiras laterais estavam desocupadas; o motivo, julgo que se dê pelo pouco conhecimento do povo porto-alegrense em relação ao trabalho do grupo caxiense. Grupo este que comemora dez anos de união, a Cia. Teatral Atores Reunidos conta com a direção geral de Raulino Prezzi, direção artística de Ana Fuchs e um elenco jovem, formado por nove artistas.

Deixemos agora as formalidades descansarem enquanto descrevo um pouco da minha peculiar experiência na noite em questão: a cena de abertura de "CRU", sem dúvida a mais linda de todas, é visualmente soberba. Nus, corpos débeis são banhados por filetes de luz numa dança harmônica e poética. Há bom equilíbrio cênico, honrando o nosso caríssimo “platô”; não ouso definir a trilha sonora, mas muito me lembrava à música celta, que já ligo com ópera. Cria-se uma confusão de vozes com a primeira fala, que inclusive permeará (tal gancho) a trama do espetáculo: “Ama (pausa) Escreve”. A nudez torna-se explícita quando as luzes são ligadas, é aí que os personagens correm constrangidos.

O cenário limpo e minimalista, conta com apenas uma mesa branca. Ao decorrer da peça, notaremos quão subjetiva e sagaz (também cansativa) é a lógica escolhida. Os personagens não chegam a formar relações sólidas e a linearidade (início, meio e fim) é questionável. De um maníaco com vestes de açougueiro e gancho na mão, vamos para um casal de homens que discutem a relação na mesa. Interessante que as calças não faziam parte do figurino. Com adequado nível de jogo, o casal termina a discussão (que é permeada por longas pausas) encima da mesa, ao passo que conciliam: tango, sexo e fuga. A mesa é agora porta de transição para o território da morte, a menina de vestido branco e bebê no colo. É contada uma história nos extremos do palco, de um lado a narração, do outro a ação. O personagem que narra a história, ao enfurecer-se, demonstra o pouco preparo vocal; suas veias saltam e a pele cede ao vermelho. È possível dizer que a voz, no contexto geral, não consegue atingir a força do diálogo; resultando em falta de presença no palco e insegurança. A voz, compreendida como extensão corporal, deve ser uma aliada no trabalho cênico e não uma inimiga.

Em fileira, os atores mostram-se suspensos por cordas, como bonecos de madeira. Que naturalmente ganham vida sendo assim manipulados e logo mais libertados pela morte. Retirei o fragmento abaixo do programa do espetáculo.

“O destino de cada um está suspenso em cordas invisíveis, manipuladas por um deus, suposto ou real, que se diverte com o espetáculo que ele mesmo criou. Mas que precisa rir sozinho, pois é intangível.”

No velório de Flávia (simbolizada por um dos atores), as garotas debruçam-se sobre o caixão bradando que a mesma acordasse. Em histeria, abusam do finado como se fosse um pano velho, “um pedaço de carne carcomida”. Prostitutas, as mulheres vão revelando suas experiências com Flávia e seus conceitos sobre desejo e morte; tudo em tom fervoroso. Destaque para a coreografia cômica. Flávia acorda e o conflito é resolvido com uma morte; porém, apesar da busca nervosa por uma atmosfera de tensão, ela nunca é firmada. As palmas do público antes do término revelam que o nervosismo do elenco foi refletido em impaciência por parte da platéia.



Uma das últimas imagens, composta por todos os atores em volta da mesa, trata-se da conhecida Última Ceia – ou deveria dizer Profana Ceia? – que me remeteu à cena final do filme espanhol “Viridiana”. Os “discípulos” alimentam-se de pão e vinho, mas a fome não é saciada. E assim damos partida ao banquete carnívoro, também lascivo. Uma nova coreografia resulta em orgia, intercalada por “fotos”: pausas em que todos congelavam seus movimentos, ao passo que viravam os rostos para a platéia em tom de constrangimento e repreensão. Tudo isso num belo contraponto da luz: enquanto a metade inferior da mesa (e dos atores) era iluminada por uma luz fluorescente branca, a metade superior contava com um holofote de luz vermelha alaranjada. Trabalho impecável de Juarez Barazetti.

“A ordem mais latente, a fome mais sublime, a intangibilidade de tudo são transformadas num balé doce/macabro que escancara a presença da finitude”

A última cena, não fosse a cacofonia moralista das gravações de fundo, teria maior carga de impacto. Justamente essa tentativa de impacto, visível tanto na nudez quanto no próprio material de divulgação, não funciona como deveria. Se para alguns impacta, para outros margeia a comicidade. Nesse caso, vejo a humildade como uma das possíveis soluções.

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