10/06/2010

Minhoca de Açúcar

"Betsy tem uma irmã, Ringo tem Betsy, Multscher não tem nada. Ringo quer continuar, Multscher quer alguém, Betsy quer ir à praia, Petrik quer ser uma cobra e Friederike não quer."



Demorei para entrar no auditório do Instituto Goethe, em Porto Alegre, e acredito que também vá demorar para esquecer da primeira vez que o fiz. Não que a peça teatral "Parasitas" - motivo da minha ida - tenha sido excepcional. Acontece que o cenário causou em mim um impacto inesperado: fiquei bobo, embevecido. Claro que eu sabia que aquela nuvem colossal atrás dos atores, sustentada por hastes metálicas, não passava de um monte de algodão. E claro que eu sabia que nada do que os atores diziam ou faziam era verdade. O que eu olhava, escutava e sentia... Era teatro. Não importa, para mim aquela nuvem podia muito bem esguichar água, raios ou granito. Acreditei piamente na força, literal ou simbólica, da nuvem que brilhava, cujas cores dos holofotes demarcavam os distintos estados de espírito das personagens.

O parasita está sempre em estado de alerta, a ponto de surtar. Apenas sugando o outro que a paz lhe é concedida. No entanto, é um ser dependente, nunca parece estar completamente saciado. Faz da vida uma procura árdua, motivado pela insatisfação.

Feliz foi o dramaturgo alemão Marius Von Mayenburg quando criou as personagens e o enredo de "Parasitas": depois de ter causado o acidente que deixou Ringo paraplégico, Multscher não consegue mais dormir, mostra-se frágil, arrependido e, principalmente, um ser desperto que não consegue lidar com a culpa. Petrik violenta a mulher e tem obsessão por uma cobra (com a qual alimenta uma complexa relação), revelando amor (ou seria dependência?) pela mulher Friederike somente quando essa parte. Ringo fica aos cuidados da namorada Betsy, uma flor despetalada, sempre com o mesmo tom histérico e afetado. É ela quem hospedará tanto a irmã suicida (Friederik), quanto o velho Multsche. Posta a mesa, que comece o banquete. Sim, porque aqui um come o outro; não fosse isso, teriam uma nuvem negra cuspindo a mais violenta tempestade em suas cabeças.

Em "Parasitas" tudo é e não é. E uma vez que o diretor não se importa com isso, nós tampouco. Petrik é o homem de Friederik, mesmo sendo uma mulher; Friederik não tem barriga mas está grávida; Ringo é um paraplégico que pode andar e Multscher é um velho, ainda que jovem e vigoroso. A não presença de certezas ou concretudes parece se encaixar perfeitamente com a concepção estética e dramatúrgica de João Pedro Madureira, já que é moderna e não-linear. Não tem início, meio, fim ou solução.

Ringo quer continuar porque não acredita que este seja o fim, não suporta o fato de estar trancado em sua própria casa e ser obrigado a travar constantes discussões com a namorada. Leo Maciel teve de trabalhar a articulação vocal acima de tudo, suas falas eram extensas e corridas. Betsy quer ir à praia e não alimenta discussões com Ringo porque vive na superfície de tudo. Laura Leão tinha o que precisava: carisma e energia. Multscher não tem nada porque passou a maior parte da vida "dormindo" e, uma vez acordado, é uma criança à procura de redenção e carinho. Francisco Gick sabe narrar uma história e usar o corpo com organicidade, creio que a não construção do biotipo de um "velho" tenha sido orientação por parte da direção. Petrik quer ser uma cobra por não se adequar à uma vida civilizada, regrada. Priscila Collombi, assim como Francisco, não buscou trejeitos masculinos para a composição de seu papel; gostei do resultado final. Friederik diz que não quer, mas engana: deseja que os outros queiram que ela, suicida, viva. É sarcástica e ríspida, também desgostosa; destaque para a cena em que está deitada e dá o texto sem completar as últimas sílabas da maior parte das palavras. Esta, e uma das últimas cenas, em que aparece nua e molhada na porta vitral, são ilustres exemplos da força e da beleza plástica do espetáculo. Patrícia Soso tem em mãos Friederik, a personagem que se apresenta mais complexa e profunda, elementos que auxiliaram a atriz em sua performance notável, mais que isso, hipnótica.

Também é alvo da minha percepção teatral os símbolos contidos na assim chamada refeição das personagens: garrafinhas com líquido azul claro e jujubas em forma de minhoca, que serviram como material de divulgação. As garrafinhas que eram jogadas de mão em mão representavam a dinamicidade do diálogo e o pão, pelo qual nasciam os conflitos. As jujubas coloridas são, no mínimo, zombeteiras; como se quisessem ironizar as relações amargas com seu açúcar. Quanto às minhocas, não importa quantas vezes você as corta, elas continuam a deslizar sobre você.

Um rótulo coerente seria o de "Teatro pós-dramático": http://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_p%C3%B3s-dram%C3%A1tico

"O espaço cênico como área de confronto, de encontro, tátil talvez, sinestésico com certeza. O olhar que recebe o olhar do outro, que também olha. O olhar se vê no olhar do outro. Não há como desviar. Todos são reagentes."
Marius Von Mayenburg




Ficha Técnica
Direção: João Pedro Madureira
Concepção: João Pedro Madureira e Maria Luíza Sá e Madureira
Elenco: Francisco Gick, Laura Leão, Leo Maciel, Patrícia Soso e Priscila Colombi
Produção: Laura Leão
Roteiro: O grupo Vai!Cia de Teatro
Cenário: Leonardo Fanzelau
Figurino: Daniel Lion
Iluminação: Gilberto Fonseca
Cabelos: Elison Couto
Maquiagem: Taidje Gut
Fotos: Betânia Dutra
Design Gráfico: Didi Jucá
Assessoria de imprensa: Sandra Alencar
Assistente de Produção: Carolina Kern
Patrocínio Instituto Goethe e Prefeitura Municipal de Porto Alegre

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