E assim começa "A Obscena Senhora D.", da escritora brasileira Hilda Hilst: Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. [...]
Estas palavras foram vociferadas em tom zombeteiro pela atriz Suzan Damasceno, que de forma pausada e lenta (no teatro, Stanislavsky chama de pausa psicológica), apresenta-nos a viúva sexagenária Hillé. O precedente da viuvez é a perda do companheiro. Nesse caso, Hillé não perdeu apenas o estimado marido Ehud, perdeu o chão. Ehud era o ponto de contato que Hillé tinha para com a sistematização cotidiana, sempre pedindo-lhe um café ou uma trepada. Uma vez que os conceitos são desmanchados, faz-se necessário uma empreitada em direção à busca do sentido das coisas. Com o sentimento de abandono, a personagem joga-se ao vão da escada e mergulha em profunda loucura, no entanto, é justamente aí que consegue emergir em direção a momentos de intensa lucidez.
Os questionamentos começam a explodir no copo débil de Hillé, levando-a a um discurso ardente no qual ninguém escapa de sua língua feroz, que denuncia e interroga toda e qualquer convenção social, sendo que o alvo principal é Deus. Entre as corporificações divinas, destaco duas: uma gigantesca tampinha prateada e um menino porco. Hillé é taxada de obscena por sua irreverência em face aos costumes, que podem ser comparados a roupas. Diante disso, ela prefere estar pelada. E quem não gostar ou escadalizar-se, ela urra em cima sem o mínimo pudor. Situação vista no embate com seus prosaicos vizinhos, sempre tentando resgatá-la para a realidade deles. Segundo a mente revolucionária da velha senhora, o cetim não distingue a madame do mendigo, pois ambos possuem o fétido buraco: o cu, esse demolidor de vaidades.
A indefinição do tempo e do espaço é refletida no cenário, que apesar de ser sóbrio e taciturno, transborda de símbolos: a terra que cobre o chão está ali para lembrar ao ser humano sua condição de bicho, o seu lugar; a palha representa a fragilidade e o aquário com peixes de papel pardo revela-se como o único elemento de cuidado e possível afeto para com o outro. Hillé não quer peixes coloridos porque já não suporta o brilho mentiroso, a casca. Encontra-se em tal estado que só a essência lhe faz algum sentido, por isso a crueza estética do espetáculo. Não só por isso, mas também porque a palavra é fundamental. O que é deixado bem claro, uma vez que a atriz passa praticamente a dramatização toda sentada em uma cadeira, em contínua narração.
Suzan acerta ao utilizar da imobilidade física, um método de composição da personagem. Este "monólogo do silêncio" objetiva alcançar um estado de sensibilidade, no qual todas as percepções corporais e mentais sejam atiçadas. Há que se desapegar de tudo (sair do lugar comum), focar no horizonte para adentrar em um estado de vacuidade e aos poucos iniciar um ponto de partida que a conduzirá na construção da obscena senhora d., esta bufona escatológica. D de derrelição, desamparo ou abandono; tanto o físico quanto o divino.
É importante ressaltar as variações encontradas por Damasceno em sua montagem paulista, tornando cada personagem único, com presença e vivacidade, desde a voz grave de Ehud até as vozes com sotaque caipira dos vizinhos intrometidos. A lâmpada muito próxima da cabeça da atriz representa a tempestade luminosa de ideias e conceitos em constante questionamento. Apesar de uma mulher soturna estar sentada naquela cadeira, trata-se de uma mulher soturna iluminada. Mas nem a luz - quem dera a morte - foge de seu questionamento baseado no escárnio.
Ficha Técnica
Texto: Hilda Hilst
Concepção: Suzan Damasceno
Adaptação: Germano Melo e Suzan Damasceno
Direção: Rosi Campos e Donizete Mazonas
Elenco: Suzan Damasceno (Discípula de Antunes Filho)
Cenografia e Figurino: Anne Cerutti
Iluminação: Pedro Brandi
Duração: 55 min
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