Por Andrei Moura
Uma vez que ninguém pode sem crime, espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, [os colonizadores] consideram como princípio que o colonizado não é um semelhante do homem... Nada será poupado para liquidar-lhes as tradições, substituir-lhes as línguas, para destruir sua cultura sem lhes dar a nossa... se ele resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, se degrada, não é mais um homem; e o medo e a vergonha fissuram seu caráter, desintegrando sua pessoa.
[SARTRE. Jean-Paul. in prefácio à Franz Fanon: Les damnés de la terre.]
A Liberdade sempre foi um tema que fascinou, instigou, e despertou o interesse de filósofos, intelectuais e artistas. Para os gregos, os rumos humanos estavam subjugados às Moiras – as três sinistras irmãs que teciam os destinos dos deuses e dos mortais –; mais tarde, para os judeus, e posteriormente para os cristãos, a vida dos homens era comandada pela providência divina, que vigiava e punia; para o filósofo Jean-Paul Sartre, estamos condenados a ser livres; e para a poeta Cecília Meireles, LIBERDADE é palavra que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda. O motivo de tão abundante ocorrência em diversas áreas de conhecimento se deve exatamente pela ausência de liberdade, implícita ou explícita, em diversos períodos históricos e em variados contextos culturais, sendo, portanto, praticamente indissociável da própria história do ser humano sobre a face da Terra.
Em Quanto Vale ou é Por Quilo?, Ernani Poeta (utilizando o mesmo título do filme de Sérgio Bianchi) recaptura a questão da liberdade humana transpondo-a cenicamente, em forma de musical, examinando o denso e tenso tema do tráfico humano e seus desdobramentos: a prostituição e o tráfico de órgãos.
Em uma éspécie de prólogo, a peça começa com uma ruptura de expectativa do público: os três sinais que pontuam o início do espetáculo soam enquanto as pessoas ainda esperavam do lado de fora do teatro Renascença. Passado o estranhamento inicial, logo a plateia, de pé, e entre conversas, se cala (ao menos em parte), diante do enfileiramento do elenco atrás das portas de vidro. A analogia é clara: os atores são postos como produtos em uma vitrine, representado, portanto, sujeitos com sua individualidade e valores violados, reduzidos a condição de mercadoria. É interessante perceber a provocação de Poeta: ao deslocar a plateia de sua posição “natural”, isto é, sentada confortavelmente nas poltronas do teatro, ele nos prepara para o encontro com personagens também deslocados de seu posicionamento "natural", destituídos de sua condição humana: se tratam de sujeitos tomados como objetos.
A objetivização do sujeito prossegue quando Evelyn Roe (Cláudia Rocha) surge cantando sua trágica história sobre uma caixa de madeira, ocupada por um ator. Destaque para a bela voz da atriz e para o figurino e maquiagem, condizentes com sua tétrica tajetória. Aliás, plasticamente, a iluminação e a economia de cores e de apetrechos cênicos, funciona muito bem em um espetáculo que se dispõe a refletir sobre a miséria humana tanto dos explorados quanto dos exploradores.
Com a entrada de Mack, Jhonny e Barrabas (Juliano Fortini, Pedro Andrade e Daniel Vasconcellos, respectivamente), o trio dos exploradores, já se pode vislumbrar que a abordagem de Poeta recorrerá a uma divisão maniqueísta dos personagens, superficialmente presos a sua condição emblemática. E aqui o texto perde um pouco a força dramática pela tinta forte utilizada pelo diretor-autor. Não enxergamos, em momento algum, a humanidade desses personagens, nem da Madame (Roberta Turski). Eles não vacilam, não tem profundidade psíquica, apenas agem de acordo com sua volúpia mercantilista.
Semelhante fenômeno se observa com Jenny, Dóris, Justine e Shirley (Marci Berselli, Helena de Bem, Lílian Roisenberg e Graziela Franco) todas –mulheres!– frágeis vítimas de um cruel sistema. É como se todas formassem um único personagem desdobrado em quatro, cujas narrativas, mentes, e conflitos, fragilmente se esboçam em cena. Um tema que por si só já emociona não precisa recorrer a este tipo de expediente de melodramatização. Hoje em dia, sabe-se que as relações de poder não são fixas, sendo que as posições de dominante e dominado flutuam, se cruzam, se (con)fundem. Outro ponto baixo foi a repetição do já batido texto de Bertolt Brecht que fala para não tomarmos como natural o que é de hábito. A repetição deve ser um recurso utilizado com cálculo de intenção. Excessiva não provoca a ênfase, mas o esvaziamento de sentidos.
E por falar em esvaziamento de sentidos, em alguns momentos as músicas, com letras de Brecht, não se inserem da melhor maneira na estrutura do espetáculo, por não efetivarem uma progressão narrativa. O que conferiu, em alguns momentos, o aspecto de uma colcha de retalhos mal-costurada.
Fora os tropeços de concepção, cabe ressaltar a sintonia entre os atores (com boas atuações); a excelente entrada do povo protestante, marcando o início do segundo ato com a canção Ao Invés de, pela impressão de novo ritmo ao tom lúgubre reinante; a música do pianista Gilson Geiger; e, especialmente, o diálogo entre a Madame e o Inspetor Chaves, revelando o cinismo e o jogo de interesses nesse embate.
Como era de se esperar, o término da peça se dá de modo pessimista – com a morte de Mack (o lado mais fraco desta corrente), com a comprovação da conivência da polícia, e com o estupro de Justine (a única traficada, de fato, rebelde) por Barrabás – dando a entender que o ciclo de exploração não se encerra com o fechamento das cortinas. A universalidade e atemporalidade do tema ficam bem expressas pela ausência de uma moldura espaçotemporal, um grande acerto de Poeta. A ideia de um ciclo vicioso pode ser lida pela estrutura circular do espetáculo, cujo Gran Finale se dá novamente com o canto de Evelyn Roe, desta vez sobre diversos corpos.
Apesar de discordar da insistência em culpabilizar o público e a sociedade e do meu desconforto com o discurso de vitimização das personagens para ganhar a adesão do espectador, Quanto Vale ou é Por Quilo?, certamente, é um espetáculo com fôlego para novas temporadas, que merece ser visto e debatido. Para lembrar que as artes cênicas, muito mais que distrair ou entreter, nos colocam em face de nós mesmos, para nosso espanto e nossa íntima identificação. E, do espanto e da identificação, nascem a nossa autonomia de pensamento e de ação. E, novamente, falo de liberdade, citando Rosa Luxemburg, para quem a liberdade é sempre unicamente a liberdade de quem pensa diferente.
FICHA TÉCNICA:
Texto: Ernani Poeta, com músicas de Kurt Weill e letras de Bertolt Brecht.
Direção: Ernani Poeta
Fotografia: Myra Gonçalves
Elenco: Ana Carolina Santana, Andréa Almeida, Bruno Cardoso, Cláudia Rocha, Daniel Vasconcellos, Diego Brasil, Diego Farias, Fabiana Guiguer, Graziela Franco, Guilherme Nervo, Helena de Bem, Henrique Gonçalves, Juliano Fortini, Lílian Roisenberg, Marci Berselli, Pedro Andrade, Roberta Turski e Tatiane Gonçalves.
Pianista Convidado: Gilson Geiger
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