12/10/2015

Guiomar, A Filha Da Mãe (PE)




Augusta Ferraz, um dos grandes nomes do teatro pernambucano, interpreta Guiomar, uma louca professora de história. Com o texto de Lourdes Ramalho, escrito especialmente para a Augusta, a atriz representa ao público a sua versão de como foi construída a história do Brasil. Inicialmente, o espectador é colocado à escuta dos causos que estão sendo contados. É perceptível o grande trabalho vocal da atriz. Augusta Ferraz apresenta exemplar domínio de sua voz quanto ao sotaque utilizado pela personagem, predominando o português de Portugal, fazendo com que o espectador preste maior atenção ao texto dito para melhor compreensão deste. Principalmente onde há canções em que, ao mesmo tempo em que são executadas com tamanha excelência, levam-nos ao sertão nordestino.


Por diversas vezes eu sentia o calor da região, a seca, a miséria, as dores da personagem. Tudo isso a partir da voz de Guiomar e, também, da iluminação. Cores quentes. Alaranjadas. Avermelhadas. Sensações que eram transmitidas aos olhos do espectador. A transmissão de sensações aumentava gradualmente durante o espetáculo. Houve o momento em que as luzes da plateia foram todas acesas para, então, Guiomar entrar em contato direto com o público.


"O senhor aí tem um trocadinho?"
"A senhora tem uma bala? Prova primeiro para eu ter certeza que não é veneno."
O público tornava-se protagonista nessa cena de interação.
O público tornava-se protagonista nessa representação da realidade.
Por quantos moradores de rua passamos durante o dia?
Quantos deles nos pedem algo?
A quantos deles atendemos aos seus pedidos?
Você já conversou com algum deles?
Você já olhou nos olhos de algum deles?



Olhos que gritam. Gritam verdades que não estamos acostumados a vivenciar. Acreditar. Enxergar.


Enxergamos não só uma peça de teatro. Mas uma representação forte da realidade. Aquela que não faz parte da maioria das realidades ali presentes.


Quantas Guiomar existem por aí?
Quantas?!
Quantas...


Por Manu Goulart



Ficha Técnica

Direção: Moncho Rodrigues e Augusta Ferraz
Autor: Lourdes Ramalho
Dramaturgia cênica: Moncho Rodrigues
Atuação, desenho de luz, adereços, pesquisa musical e administração: Augusta Ferraz
Figurino: Marcos Pinto
Assistência de produção e palco, fotografia, filmagens: Alcides Ferraz
Montagem e execução de iluminação: João Guilherme de Paula
Realização: Grupo Pharkas Serthanejaz, Augusta Ferraz
Duração: 70min


Meredith Monk & Vocal Ensemble: The Soul’s Messenger (EUA)




Ah – Mmm – Ah – Mmm – Ah – Mmm
Hey – Hey – Hey – iiiiiii
Ah! – Ahhhh – LaLaLaLaaaaa – LoLoLo – Si Na Maaaa    
Trees - Trees - Oh trees - Trees - Birds - Coffe - Coffe - Coffe - Do you remember? - Do you remember? - Do you remember?

           
Pra mim não existe descrição melhor do espetáculo musical de Meredith Monk do que essa: um anjo no palco e seus companheiros alados. Olha, pode parecer bobagem ou até mesmo incabível essa comparação. Mas não é. Se você esteve lá você sabe. Dividir o mesmo tempo e espaço com a voz de Monk e sua companhia é se permitir ouvir a ousadia solar e lunar da criação. A sensação de que presenciamos um momento raro ficou marcada em mim. Por isso eu digo que somente um ser estelar poderia construir paisagens, sentimentos, pensamentos, sensações e vibrações com a própria voz. É como se tudo o que a voz de Monk tocasse sofresse uma alteração química e física em sua constituição original.


Era interessante sentir a plateia em estado de contemplação, leveza, serenidade, encantamento. O tempo parou e cada um mergulhou na sua infância, nos momentos marcantes de amor e horror, nos traumas e nos exemplos positivos. Viagem é a palavra perfeita para descrever a experiência “Monk”. E você pode ter certeza que ninguém trilha o mesmo caminho nessa viagem.


Preciso admitir que eu gostaria de ter permanecido nesse estado profundo de interiorização, de mergulho interno e encontro consigo. Mas teve uma hora que eu me senti incomodado e cheguei até a sentir um desconforto, pois parecia que o tempo estava demorando para passar. A bolha “Monk” rompeu e eu me vi escutando a respiração profunda da espectadora do meu lado que parecia estar em um sono profundo.




De repente a “grande sacada” do espetáculo, sua essência, a linguagem própria, inventada, os ruídos para entrar em transe e o chamado dos anjos pareceu perder completamente o sentido e eu caí da minha nuvem de encantamento. Pensei que muitos devem sentir isso em determinado momento. Pensei em quantas pessoas sentiriam isso durante todo o espetáculo e naquelas que nem por um segundo sentiram isso. Pensei: essa obra de arte é universal, é para todos. Mas ao mesmo tempo não, é para poucos. É para os que têm gosto refinado e muito conhecimento teórico. Capacidade de abstração. Será?


Como eu gostaria de parar de pensar e apenas curtir. Sentir. É isso! Talvez esse seja o segredo da experiência “Monk”. A ênfase está no sentir. A partir do momento em que a mente interrompe a leitura intimista do ser que sente, a mágica desaparece. O “sentido” desaparece. Estou certo de uma coisa: a mensagem da alma está muito além dos domínios mentais. É o eterno mistério que pulsa e vibra em cada um, que está registrado encima e embaixo, à esquerda e à direita de cada um, mas ainda assim podemos ignorá-lo. Monk é uma experiência única de abertura de um olho interno, a grande porta da percepção.


Por Guilherme Nervo





Ficha Técnica

Composição, voz e teclado: Meredith Monk
Músicos: Katie Geissinger (voz), Allison Sniffin (voz e teclado) e Bohdan Hilash (instrumentos de sopro de madeira)
Iluminação: Noele Stollmack
Design de som: Lucas Indelicato
Produção: Peter Sciscioli

Duração: 90min

11/10/2015

Como A Lua (PE)




Tudo o que nasce morre
Tudo o que morre volta a nascer
Como a lua
Como a lua


Não foi só a música que continuou em minha mente após ter assistido ao espetáculo do Grupo Mambembe nesta tarde de sábado, mas todos os lugares por onde fui levada enquanto o assistia.


A peça de José Manoel Sobrinho conta não só a história de amor do índio Paya pela belíssima índia Cólon, mas a história da existência. O nascer, morrer, permanecer, renascer, conhecer. As nossas descobertas.


Para isso, somos levados, primeiramente, à realidade de Paya e Cólon. A música é o nosso meio de locomoção. Com a fantástica direção de Samuel Lira, e também com sua cativante presença cênica; todo o elenco transforma o palco do SESC em um cenário mitológico. Estamos aonde acreditamos que estamos? Basta fechar os olhos para logo se sentir junto ao simpático casal. Ouço o barulho de um riacho - ou seria uma cachoeira? Olha! O canto dos passarinhos! E todos os demais animais presentes nessa floresta.




Presença. Atores extremamente presentes. Mesmo enquanto estão concentrados na musicalidade, ou na atuação cênica. E o que dizer quando há um público participativo? Vemos a comunicação entre espectador e ator. A peça torna-se um canal entre aquele que assiste e aquele que apresenta. Olho ao redor. Crianças, adultos, todos estão conectados.


A conexão também é satisfatória entre a história de Paya e Cólon com a dos colegas de classe da vida urbana. A descoberta do amor, a ingenuidade, os questionamentos, apesar de possuírem aspectos característicos do local onde se encontram - "selfie", "cabra-cega" - a essência é a mesma. Independente do local onde algo ocorre, há uma essência que une. Enquanto Paya dá cambalhotas e se exibe para a indiazinha Cólon, os amigos descobrem a magia do primeiro beijo.


E magicamente, as histórias se unem. Algo faz com que a realidade de Paya se junte ao dos coleguinhas. Mas como? Como? Eles vivem em mundos tão distantes. Culturas distintas. Como?! Apesar de o modo de vida ser diferente, o essencial da vida é semelhante. Todos brincam, têm suas dúvidas e possíveis respostas. Todos sentem. Amam. Eis o essencial.

E essa essência foi o que me prendeu durante todo o espetáculo.


Por Manu Goulart



Ficha Técnica

Direção: José Manoel Sobrinho
Autor: Vladimir Capella
Elenco: Luiz Veloso, Kamila Souza, Geysa Barlavento, Marinho Falcão, Pascoal Filizola, Samuel Lira, Sandra Rino e Tiago Gondim
Trilha sonora: João Falcão, André Filho e Alan Sales
Desenho de Luz: Luciana Raposo
Operação de luz: Rodrigo Oliveira
Cenografia e figurinos: Cláudio Lira
Direção musical, arranjos e preparação vocal: Samuel Lira
Fotografia: Laryssa Moura

Produtor executivo: Elias Vilar

Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea (RS)




É a verdade o que espanta em Bukowski – Histórias da Vida Subterrânea. O homem existiu. Sua história existiu. Suas palavras existiram. Ao assistir a peça não soube diferenciar o que mais chamou minha atenção: o homem e sua forma de ver o mundo ou a excelente montagem do grupo Depósito de Teatro. Sem dúvida, os dois. Fui profundamente tocado por essa montagem, não sabia o que esperar, pensei, inclusive, que eu não ia gostar. Muito pelo contrário, me diverti, me emocionei, ri, aprendi.


A cena em que os pais de Bukowski aparecem me marcou e a partir dali eu tive a certeza de que o espetáculo só iria crescer e foi exatamente assim. Comecei a refletir sobre todos esses meninos, meninas, jovens e até mesmo adultos que não se ajustam ao mundo como ele está, que têm muita dificuldade em representar o teatro que todos nós formamos e conservamos, século após século, com direito a normas de conduta, o que é certo e errado, um sistema econômico brutal no qual ou você se ajusta ou você margeia a sociedade. Está certo que essas pessoas não fazem parte da parcela hegemônica social, mas antes, contra hegemônica. Representam tudo aquilo que está contra o sistema massivo e manipulador que podemos chamar de “Matrix”, fazendo uma referência ao filme. Se essa parcela pode ser comparada a um vírus, a questão é como ser um vírus na célula, ao invés de fora dela. 


Bukowski encontrava no álcool e no tabaco uma forma de sobreviver a um mundo hipócrita: silenciosamente violento e profundamente reprimido. Também gostava de mulheres e é interessante como algumas viam seu trabalho: com desprezo, deboche, dizendo “até mesmo eu consigo escrever isso!” – frase que já ouvi de muitas pessoas e tenho sempre a mesma reação: “- Então por que não é você no lugar dele?!”, sabe? – às vezes desvalorizando momentos alegando que ele só queria matéria prima para seus escritos.




A verdade é que não importa o quanto Bukowski se destrua, não importa o quanto ele fale mal do mundo ou mesmo não veja um futuro digno: não importa. Ele está ali. É um ser como nós e ao mesmo tempo diferente. Incrível. Adoraríamos ter um tio como ele ao mesmo tempo em que detestaríamos. Bukowski não passa despercebido e faz impossível que o ignoremos ou às suas palavras, nem que seja para rotulá-lo de “maldito”.


O cenário é realista e composto por muita sujeira, várias garrafas vazias, carteiras de cigarro amassadas, cigarros abertos espalhando tabaco, mesas, cadeiras e uma parte de uma residência que é o local aonde morava Charles Bukowski, com uma escrivaninha, uma geladeira e outros apetrechos. Tudo isso ajuda na atmosfera criada pela peça, mas eu ouso dizer que o trabalho da companhia Depósito de Teatro é de um nível tão bom, que dispensa todo o cenário, por si só os atores já conquistam o interesse da plateia e a atmosfera de caos, destruição, desordem, e rebeldia contra o sistema capitalista. Entretanto, por incrível que pareça, a característica mais marcante da montagem não é nenhuma destas e sim o toque profundo de humanidade que o poeta tinha em si – essa é a tônica essencial da peça e é o que faz ela ser tão digna de elogio.


Toda a estrutura narrativa da peça, que é não linear, em conjunto com as atuações efervescentes, cheias de entrega, paixão e verdade – especialmente a de Roberto Oliveira e da atriz com a personagem de voz rouca e muito doente, na cama -  intensificam o poder de qualidade e o valor autêntico dessa obra que eu recomendo. O aspecto que eu aprofundaria mais é a infância, adolescência e juventude de Charles Bukowski, especulando com carinho toda a formação desse homem, a origem de suas indignações, frustrações e insatisfações. Assim como a origem de seu espírito revolucionário, sua coragem de falar e viver seus próprios ideais, a força de suas palavras e também a repercussão delas. Muito importante ressaltar a minuciosa pesquisa do grupo, realmente mergulhando no mundo de Bukowski e consolidando uma peça teatral fiel à história e à literatura de um homem que dizia que tudo o que escrevia era autobiográfico.


Por Guilherme Nervo




Ficha técnica

Direção e dramaturgia: Roberto Oliveira
Elenco: Aline Armani, Cris Eifer, Elisa Heidrich,  Marcelo Johann, Pitti Sgarbi e Roberto Oliveira
Trilha sonora: Francine Kliemann, Roberto Oliveira e Kevin Brezolin
Produção executiva: Joice Rossato
Iluminação: Fabiana Santos
Cenografia: Modesto Fortuna
Figurino: Elisa Heidrich
Operação de som e vídeo: Fernanda Fávero
Duração: 80min


10/10/2015

P-U-N-C-H (RS)




Acredito que essa tenha sido a percepção mais difícil de escrever. Há tempos, eu não presenciava algo semelhante. Sabe quando uma pessoa muito sensível vai assistir a uma peça tão forte que lhe toca no que há de mais íntimo e profundo? É necessário um tempo para compreender tudo o que começa a passar por nós. Assim, só agora consigo escrever sobre. 


Eu já sabia do que a peça tratava, e me interesso bastante pela temática escolhida. E colocar isso tudo numa ópera é uma ideia deveras tentadora. Pois é essa junção das artes que dá maior intensidade ao que será apresentado. Dança, música, teatro... Quando é bem feito, toca o público. E foi isso o que aconteceu. Bastou olhar as expressões dos espectadores, seus comentários durante o espetáculo, a forma como eles saíram do teatro, etc. 


Começando pela cena inicial: o som da orquestra junto aos movimentos lentos do bailarino atravessando o palco. Essa mescla entre sonoridade intensa e movimentação lenta se repete pela peça. O resultado em mim foi uma tensão pelo meu corpo. Era como se algo estivesse sendo preparado para ser realizado. Como se cada micromovimento resultasse na força e agilidade representada pelo som dos violinos. Como se cada lento e calmo micromovimento tivesse outra intenção: a da pressa e da voracidade. 


 Movimentos que se repetem. Movimentos que se repelem. Que se aproximam. Que se chocam. Que gritam. Que sussurram verdades em nossos ouvidos cardíacos, emotivos. 




 Por uma noite. Por apenas 1h40min de uma noite, eu pude ter uma clara ideia do que cada uma daquelas pessoas sentiu. A dor, as dúvidas, o medo, as incertezas. Cada momento me surpreendia. Independente de eu ter conhecimento ou não do que ocorreria - afinal, muitos amigos que assistiram, comentavam bastante e demonstravam o quanto o espetáculo os afetou. Conhecendo ou não, os momentos me impressionavam. Era mais tocante o "Como aconteceria" ao invés de "O quê aconteceria". 


Um dos momentos era a cena em que uma das bailarinas tinha o cabelo raspado em cena. Eu só percebi que aquilo aconteceria quando enxerguei a máquina no bolso do ator que a carregava. O instante, por mais rápido que tenha acontecido, tornou-se uma tortura. Pessoas ao meu redor murmuravam: "Ai não", "Não, não, não...!". E eu refletia se a dor maior era do público ou das pessoas que passaram por isso naquele período. Qual é a distinção entre essas dores? Essa cena foi tão chocante que eu não percebi que os demais atores tinham trocado de figurino em cena. Só entendi quando os vi com outra roupa. Os meus olhos só acompanhavam o movimento preciso da máquina pelos cabelos da atriz e o olhar expressivo dela, como se estivesse encarando algo. A si mesma. A situação. Ou cada um de nós presente naquela plateia. 


Apesar de ter momentos que nos perturbem emocionalmente, o espetáculo apresenta outros que podem demonstrar graça ao público. Um deles é a cena dos dois generais na mesa de jantar. A tensão inicial logo se mostra com um belo toque de sarcasmo e ironia em relação ao íntimo daqueles dois homens de poder. Até onde vai toda a brutalidade que demonstram? O que há no mais profundo daqueles seres? 


O que há de mais profundo em nós? Somos espectadores passivos àquilo que está sendo apresentado em cena? Acredito que, pelos olhares e feição de cada um presente, P-U-N-C-H foi um belo de um "soco" em nossa consciência. Em nossos sentimentos. 


Por Manu Goulart




Ficha Técnica

Direção Geral, Direção Musical e Concepção: Christian Benvenuti
Direção Coreográfica: Silvia Wolff
Direção Cênica: Alexandre Vargas
Criação de Luz: Maurício Aguiar de Moura
Cenografia: Elcio Rossini
Criação dos Figurinos: Carolina Di Laccio
Direção de Vídeo: Eny Schuch
Produção: Débora Plocharski Borges/Tribolê Produtora
Elenco de Intérpretes/Criadores: Alessandra Souza Alexander Kleine Andrew Tassinari Consuelo Vallandro Cristiane Bocchi Débora Jung Bonzanini Gabriela Guaragna Giuli Lacorte Guilherme Conrad Gustavo Duarte Jaime Ratinecas Jeferson Cabral Julia Bueno Walther Luana Camila Luciano Souza Manuela Miranda Matina Banou Renan Santos Silva Viviane Gawazee
Assistência de Produção: Karenina Benvenuti e Matina Banou
Identidade Visual:Christian Benvenuti