Aonde o fogo toma conta não resta vida, mas vestígios de vida. Sobreviventes. Aonde o fogo toma conta há o domínio de uma história: a história da devastação. Aonde o fogo toma conta há mãe e filho derretendo, pendurados na janela de um ônibus em chamas. Aonde o fogo toma conta há sempre o lado sombrio da humanidade. Aonde o fogo toma conta alastra-se a chama da morte, sofrimento e perda. Aonde o fogo toma conta há incêndios. Tratam-se de incêndios de dentro, aqueles que nos sufocam de raiva e ódio; incêndios de fora, aqueles que nos causam transtorno e apreensão; incêndios literais, aqueles que só de lembrar nos causam pânico e desespero. Todos incêndios reais.
Incêndios é a história de uma mulher que queimou por dentro, por fora e por todos os lados. O próprio demônio encarnado em mulher. Sim. Mas esse não é qualquer demônio. Assim como há fogo: ódio, raiva, fúria e vingança. Há também muita água: amor, persistência, cuidado e carinho. Vontade de vencer e cumprir uma velha promessa: jamais afundar na miséria. O que motivou uma mulher a permanecer cinco anos calada? A ser enterrada nua e sem caixão? A não mencionar a palavra “filho” em seu testamento? A proferir a frase: “a infância é uma faca enfiada na garganta”?
Através de um roteiro extremamente fértil, uma trama imprevisível, interessante e que verdadeiramente rouba a atenção do expectador; a peça de teatro Incêndios procura responder essas perguntas e tantas outras desdobrando e revelando o caráter de uma mulher que é uma dinamite. A princípio temos a imagem de uma mãe severa, dura, fria, absolutamente distante. O que se acentua ainda mais quando a personagem entra em cena vestida de preto e dá suas primeiras falas. A atriz hipnotiza a plateia. Qual é o segredo de Marieta Severo? Eu acredito que seja o poder e a intenção de sua voz, que sai como uma rajada de flores secas ou (principalmente) como uma rajada de navalhas. Tudo depende do que a personagem deseja nos passar, do que ela vivencia no decorrer da peça. Lembrando que as “flores”, além de serem momentos raros, são definitivamente secas. Podem ser da cor mais brilhante, encantadoras quando vistas de longe, mas não emitem aroma. Estão mortas.
Morte é com certeza um dos temas principais da peça, assim como o sofrimento, a perda, o choque e a injustiça. Quanto um ser humano pode suportar? Continuamos humanos depois de matar? Sangue deve ser respondido com sangue? Não espere momentos felizes em Incêndios, aqui a realidade misturada com ilusão é muito dura. Se essa era a ideia que o cenógrafo queria passar, ele mereceu o prêmio APTR de 2013 por melhor cenografia. São grades enferrujadas que se revelam portas para a passagem do elenco e dos outros elementos do cenário (cadeiras, mesas, bicicleta, baldes, etc). O solo é amarelado e opaco, tudo tem um aspecto sujo, destruído e especialmente claustrofóbico. Essa última característica é sutil porque no centro não há elementos de cenografia. Mas a sensação de prisão, guerra, exílio e submundo permanece durante toda a peça, propiciando o clima ideal. O que destoa muitas vezes é a repetida trilha sonora: fortes ruídos com um homem cantando aos gritos e de maneira grave, o que lembra o estilo musical
heavy metal. A princípio conectamos essa música com um dos filhos da protagonista, Simão, o jovem lutador de boxe amador. Quando vemos a mesma música se repetir em outras cenas, que aparentemente nada têm a ver, surge a pergunta: isso é proposital? Claro, talvez a direção quisesse realmente investir em uma linguagem contemporânea, misturando, cruzando e inter-relacionando tempos e espaços diversos.
Se o roteiro é o primeiro ponto positivo da peça, o segundo é a linguagem épica e contemporânea. Quando a filha Jane está sozinha em seu apartamento escutando as fitas que gravaram os dias silenciosos de sua mãe, em busca de uma resposta no silêncio da mãe, ela própria aparece como andarilha junto de sua parceira de viagem, anos atrás. O que as separa? Anos? Ali só vemos um elemento que distancia: as roupas. Enquanto as mulheres vestem roupas gastas e mais antigas, a garota veste uma roupa moderna e bem alinhada. Mas basta elas darem mais um passo e ambas estarão sob o mesmo holofote, sob a mesma luz, sob o mesmo tempo. Tudo isso confunde o expectador de forma inteligente, obviamente já revisitada por muitas outras peças, mas aqui continua com seu brilho. A filha faz uma pergunta como se avistasse a própria mãe no passado. E a mãe responde de acordo com o contexto do passado. Mas há uma sintonia de tempo, uma sintonia entre mãe e filha muito interessante, é uma cena bastante plástica. Linguagem épica porque as personagens narram a história e há alguns elementos de distanciamento ou estranhamento brechtianos, como por exemplo quando a vizinha entra com a música heavy metal e pede diretamente ao operador de som que baixe a música, ou quando as personagens se referem ao espaço físico do teatro como o que é, um teatro. Triunfo do autor Wajdi Mouawad, a narração da história pelos personagens estimula a nossa imaginação. O que seria impossível sem o talento do elenco, especialmente de Marieta Severo e Kelzy Ecard.
O desempenho do elenco também é outro ponto positivo. Basta afiar a atuação dos dois filhos do tempo presente. Ambos precisam trabalhar mais articulação e intenção vocal. Também recomendaria o cuidado com os gestos cênicos caricatos, especialmente do filho, que revelam uma construção de personagem menos cuidadosa, com menos critérios e mais exageros, lugares comuns, como por exemplo quando ele bate no peito repetidas vezes para dizer à irmã que eles têm apenas um ao outro. Não podemos esperar que atores menos experientes estejam acima ou no mesmo nível de atores mais experientes, mas podemos esperar, sim, empenho, dedicação e desenvoltura. O terceiro filho me causou muito desconforto e repulsa com sua maneira de atuar, com seu inglês misturado com português e com a sua própria postura. No início eu pensei que fosse uma falta de preparo dele, mas depois cheguei à conclusão de que ele fez exatamente o que tinha de fazer, desempenhou seu papel de um ser que, além de possuir doença mental, não sabe como lidar com isso nem se vê com alguma coisa a ser trabalhada. Kelzy Ecard apresenta o mesmo nível de desempenho de Marieta Severo, ambas estão muito potentes em cena. Destaco duas cenas: primeiro a que as duas dialogam sobre como agir perante a situação em que se encontram, enquanto Kelzy está ávida por sangue, Marieta tenta frear sua sede por vingança justificando que mais sangue não vai mudar nada. Claro que ela vê motivos para a vingança da amiga, mas traz uma outra perspectiva pra ela, de revolução e consolo. Pede para que a amiga confie nela, ou seja, que aceite a morte de apenas um homem através de não uma, nem três, mas duas balas gêmeas. A segunda cena se dá no final da peça, quando Marieta está dando uma de suas últimas falas, novamente de vestido preto, no tribunal, quando se dá conta daquilo que a faz ficar em silêncio para o resto de sua vida. Nesse momento ela agarra a cadeira que está na sua frente e a potência de sua voz atinge seu ápice. É uma verdadeira aula de interpretação em formato artístico.
Incêndios é uma peça de conteúdo amplo porque trata de assuntos, personagens e situações genuinamente humanos. Precisamos relembrar que nem sempre a vida será como queremos, mas que a força existe dentro de nós e podemos sempre cumprir nossas velhas promessas de superar a miséria, formar família e descobrir verdades avassaladoras. Se isso nos provocar anos de silêncio, bom, isso é um risco. Mas a força está ali, pronta para ser ativada e reativada quando precisarmos. Basta alcançar!
Ficha Técnica:
Texto: Wajdi Mouawad
Tradução: Angela Leite Lopes
Direção: Aderbal Freire-Filho
Elenco: Marieta Severo, Felipe de Carolis, Keli Freitas, Marcio Vito, Kelzy Ecard, Fabianna de Mello e Souza Julio Machado e Isaac Bernat
Cenografia: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Figurinos: Antonio Medeiros
Trilha Sonora: Tato Taborda
Direção de Produção: Maria Siman
Produção Executiva: Luciano Marcelo
Produtores: Maria Siman, Felipe de Carolis e Marieta Severo
Produtor associado: Pablo Sanábio
Idealização do Projeto: Felipe de Carolis
Realização: Primeira Página Produções, Emerge e Teatro Poeira
Por Guilherme Nervo